quinta-feira, 31 de março de 2011

PRELEÇÕES SOBRE A VERDADE

1a. Preleção: A VERDADE NO INTERIOR

“Para que Cristo habite, pela fé, no vosso coração; a fim de, estando arraigados e fundados em amor, poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus”(Efésios 3: 17 - 19).

Durante a Idade Média, dois grandes métodos de conhecimento espiritual foram utilizados : o Introspectivo e o Dialético. O primeiro predominou entre os místicos cristãos, enquanto o segundo foi mais prestigiado pelos escolásticos, principalmente os tomistas.

O Método Introspectivo consistia na busca da verdade através de um “olhar para dentro”. O cristão deveria se desligar do mundo sensitivo, do lado de fora, para que a verdade instalada no interior resplandecesse. Acreditavam os místicos cristãos do período medieval que a razão humana era por si só incapaz de atingir a verdade, porquanto ela havia se desvinculado de Deus pela queda adâmica , perdendo o seu ponto de apoio. Através, todavia, da reconciliação do homem com Deus mediante Jesus Cristo, os nossos pecados seriam perdoados e o Espírito de Deus habitaria em nós. Esse mesmo Espírito iluminaria a razão humana e a faria chegar a um porto seguro. Assim, a introspecção passaria do conhecimento da razão natural ao conhecimento oriundo da razão iluminada pelo Espírito, e desse último ao conhecimento puramente espiritual, intuitivo, o qual transcenderia os limites da razão.

O Método Dialético consistiria na busca da verdade através do confronto de argumentações, com prevalência da razão lógica. Os tomistas criam que o conhecimento da verdade vinha de fora. Assim, eles procuravam provar a existência de Deus mediante os princípios conhecidos na natureza (movimento, causa e efeito). Enquanto os tomistas queriam conhecer a Deus pela observação da criação, os místicos procuravam conhecer a criação através do conhecimento de Deus, ou seja: pelo conhecimento de Deus eles pensavam a natureza, como ela deveria ter sido se o homem não tivesse pecado, assim como o seu propósito na mente divina. A fé dos tomistas era eminentemente proposicional e doutrinária, a fé dos místicos era existencial e pessoal. Os tomistas ressaltavam o intelecto e eram “frios”. Os místicos enfatizavam o desvelamento da alma e eram poderosamente emotivos.

Antes dos tomistas e dos místicos, Santo Agostinho (séc. IV) revelou-se como um exemplo de moderação e biblicidade quanto ao referido assunto. Para o ilustre mestre da Igreja Antiga, o caminho místico é o correto, no entanto, a introspecção chega à verdade de forma atemática. A igreja, todavia, precisa tematizar a verdade, apresentando-a de forma proposicional, através da razão lógica, a fim de que seus membros tenham argumentos contra as hereges, de modo que a comunidade seja protegida do engano. O autor da Bíblia está dentro de nós e, com Ele, a verdade. Entretanto, a leitura da Bíblia desperta a razão natural, a fim de que ela passe à razão iluminada e esta salte para a contemplação direta da verdade. Para conferir se chegamos à Verdade e não ao engano de nosso coração perverso, devemos retornar ao Texto Sagrado, padrão avaliativo e única regra de fé e de prática. Se a introspecção é solitária, a expressão tematizada ou proposicional da verdade descoberta é fruto do debate dialético em uma igreja que se reúne com sinceridade, sob a autoridade escriturística.

“E vós tendes a unção do Santo e sabeis tudo. Não vos escrevi porque não soubésseis a verdade, mas porque a sabeis, e porque nenhuma mentira vem da verdade”(I João 2: 20 e 21).

“E a unção que vós recebestes dele fica em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas como a unção vos ensina todas as coisas, e é verdadeira, e não é mentira, assim nele permanecereis.”(I João 2: 27).

É bom salientar que os dialéticos normalmente não atuaram como agentes de transformação imediata da História. Eram exageradamente intelectualistas e lhes faltava a paixão que caracterizava os introspectivos. Os dialéticos não tinham uma convicção interior da verdade, mas criam na “verdade” consensual ou mais lógica. Os agostinianos eram de uma convicção inabalável, estavam dispostos a enfrentar a oposição do mundo inteiro pela verdade que lhes incendiava o coração. Paulo disse:“Mas quando aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou e me chamou pela sua graça, revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não consultei carne nem sangue”(Gálatas 1: 15 e 16).

O melhor exemplo de um homem tomado de convicção da Verdade foi Martinho Lutero. Poderíamos ainda citar Jerônimo Savonarola e John Wesley. Vale salientar que Lutero era um agostiniano influenciado pelo misticismo cristão germânico (Eckart e Tauler) e John Wesley pelo misticismo de Tomás de Kempis (autor de A imitação de Cristo) e Jeremias Taylor.

Nesses dias atuais em que a Cristandade, sem espiritualidade, vive para fora, dependendo de tecnicidade musical e audiovisual, a falta de convicção é notória. Alguns não crêem sequer numa Verdade Absoluta, tendo por orgulhosos os que se mostram convictos. Os pastores são “qualificados” pelo ativismo e personalidade extrovertida, enquanto os contemplativos são considerados alienados. Se quisermos um avivamento temos que nos voltar para dentro, buscando mais profundidade que largura, mais convição e espiritualidade que impressionismo sensitivo.

“Quero ser aqui o palerma orgulhoso, o cabra duro e me alegro que me chamem assim, pois o que vale aqui é não recuar(...)Em questões de amor é preciso ceder, porque ele tudo suporta; em questões de fé, no entanto, nada. (...)Não deve tolerar nada nem recuar. Deve ser extremamente orgulhoso e persistente. Contudo, em questões de amor, a situação é outra. Pela fé, entretanto, o ser humano é (por assim dizer) Deus, que não pode ceder. Deus é imutável, e assim terá que ser a fé” (MARTINHO LUTERO).

2a. Preleção : VERDADE E PARADOXO

“Para que, agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos céus”(Efésios 3: 10).

Em certa ocasião, uma pessoa mostrou-se perturbada pelo fato de eu pregar algumas vezes sobre o valor do celibato e em outras vezes sobre o valor do casamento. Na ótica daquela pessoa, uma pregação excluía a outra e a minha posição era contraditória. Eu acredito que o meu interlocutor queria que eu me retratasse de uma pregação ou de outra, mas eu continuei sustentando as duas.

Os grandes líderes da Igreja Cristã, como Lutero, Wesley e Tertuliano, pareciam contraditórios aos seus ouvintes. Isso acontecia porque a Verdade é um contraste de ênfases que se concilia no infinito. Apesar de ser possível demonstrar de modo lógico, através da razão, a coerência da verdade e a harmonização dos contrastes, essa interferência de nossa razão com o propósito de unificação faz-nos perder um pouco do aspecto arrebatador da Verdade. A melhor forma de apreensão da Verdade é, portanto, aquela na qual os contrastes são apresentados e a conciliação se dá no espírito do crente através de um êxtase contemplativo e não mediante a razão. Esse é o conhecimento espiritual, próprio para os adultos, embora não atingível pelas crianças em Cristo.

“Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido”(I Cor. 2: 14, 15).

Os que não exercitam as faculdades espirituais são incapazes de perceber os múltiplos aspectos da Verdade, porque eles têm uma visão unidirecional. Quando olham para um ângulo, perdem a percepção do outro. As heresias surgem exatamente da consideração desquilibrada da Verdade.

Nicolau de Cusa, um conhecido místico cristão, dizia que Deus era o ponto de encontro dos contrários, pois o Senhor era pequeno e grande, móvel e imóvel. Era pequeno, porque estava tão totalmente presente em um átomo como estava presente no mundo inteiro. Era grande, porque nem a terra e nem os céus poderiam contê-lo. Era imóvel, porque, sendo onipresente, não tinha para onde se mover. Era móvel, porque não estava inerte, mas operante no mundo.

Deus são três pessoas e é uma substância. Jesus era Deus e homem em uma só pessoa. No céu, há um “mar de vidro, semelhante ao cristal” (Apoc. 4:6). Ora, se é mar, tem movimento, e se é de vidro, está parado. Assim, o céu é um movimento repousante ou um repouso ativo.

O mandamento do amor é chamado de lei da liberdade (Tiago 2: 12). Na ressurreição, teremos um corpo espiritual (I Cor. 15: 44) que, à semelhança do corpo glorificado de Jesus Cristo, pode ser tocado e, ao mesmo tempo, atravessar paredes e desaparecer.

O crente deseja partir e estar com Cristo e, ao mesmo tempo, permanecer na carne por causa dos homens (Fil. 1: 21-24).

Paulo fala que, quando estamos fracos, aí é que somos fortes (II Cor. 12 : 10), e descreve a vida cristã como um paradoxo:

“...como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos, mas sendo bem conhecidos; como morrendo e eis que vivemos; como castigados e não mortos; como contristados, mas sempre alegres; como pobres, mas enriquecendo a muitos; como nada tendo e possuindo tudo”(II Cor. 6: 8 - 10).

Jesus fez o bem no sábado e demonstrou que, descumprindo o sábado, estava cumprindo a lei. O Espírito Santo, que nos guarda da tentação, conduziu Jesus ao deserto para ser tentado pelo Diabo, sendo que, obviamente, o Senhor teve a vitória.

Como o apóstolo Paulo (II Cor. 10:10), os cristãos espirituais sempre parecerão contraditórios e incoerentes aos tolos, ociosos e carnais. No entanto, se distinguirão dos inconstantes pela estabilidade, pela convicção inabalável, pela segurança e pela comunhão profunda com Deus.

“...Assim existem muitos ditos nas Escrituras que tomados literalmente são contraditórios, mas se as causas são mostradas, tudo está certo....Em verdade, o que é a vida interna de um homem senão meros antilogiae ou contradições, até que ouçamos as causas? Meus antologistas, portanto, são grandes, finos, piedosos porcos e asnos. Eles coletam minhas antilogia e deixam as causas a sós”(MARTINHO LUTERO).

3a Preleção : A VERDADE É IRRESISTÍVEL

“Porque nada podemos contra a verdade, senão pela verdade”(II Cor. 13: 8)

Nós já dissemos que o crente que, pelo Espírito, descobre a verdade no interior (I Cor. 2: 12; Efésios 1:18,19; II Cor. 4:6,70) torna-se poderosamente convicto dela. Essa santa convicção é uma chama no coração dos pregadores, a qual impressiona os ouvintes:“porque o nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e com muita certeza, como bem sabeis quais fomos entre vós, por amor de vós”( I Tess. 1: 5).

A Bíblia diz, com respeito a Estevão, o primeiro mártir da Igreja, que “não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito com que falava”(Atos 6: 10).

Aquele que está incendiado pela verdade não apenas mostra uma convicção irresistível, mas argumenta com sabedoria incrível. A convicção santa de um crente, que vive em um mundo assaltado pela dúvida, irrita os incrédulos impenitentes, enquanto o poder cristão de argumentar deixa-os perturbados. Em face disso no passado, os inimigos do evangelho, despojados de argumento que pudesse sustentar suas opiniões, caluniavam violentamente os cristãos. Os primeiros cristãos foram acusados de canibalismo e incesto. Os papistas do século XVI inventaram que Lutero era um ébrio, enquanto Calvino era falsamente acusado de ser homossexual.

No século XVIII, o santo pregador João Wesley recebeu acusações de Thomas Causton, segundo as quais ele era “um hipócrita malicioso, um sedutor, um traidor de minha confiança, um egrégio mentiroso e dissimulador, empenhado em afastar de mulheres casadas as afeições por seus maridos, um beberrão, o proprietário de um bordel, admitindo prostitutas, exploradores de prostitutas, bêbados, óh! E criminosos e sanguinários à mesa do Senhor, repelindo pessoas por puro despeito e malícia...um papista, se não um jesuíta, ou melhor, um introdutor de uma religião da qual ninguém mais ouvira; um sacerdote orgulhoso, cujo alvo é se tornar um bispo, um tirano espiritual...um semeador de sedição, um incendiário público, um perturbador da paz das famílias....em uma palavra, um tal monstro que o povo preferiria morrer a continuar com ele”(JW D, 18: 540-41)

Os homens de Deus, todavia, caracterizavam-se pela segurança que demonstravam em momentos como esses. Eles não revidavam as ofensas e nem se preocupavam em defender-se. Sabiam que estavam do lado certo e que Deus os defenderia, por isso continuavam pregando, enquanto ignoravam as críticas, para maior ira dos perseguidores.

“Toda ferramenta preparada contra ti não prosperará; e toda língua que se levantar contra ti em juízo, tu a condenarás; esta é a herança dos servos do Senhor e sua justiça que vem de mim, diz o Senhor”(Isaías 54:17).

A Bíblia diz que os inimigos da cruz, para calar Estevão, “apresentaram falsas testemunhas”(Atos 6: 13). Ele, todavia, contemplativo, se mantinha indiferente a tudo isso.

“Então, todos os que estavam assentados no conselho, fixando os olhos nele, viram o seu rosto como o rosto de um anjo”(Atos 6: 15).

Quando o Sinédrio lhe deu oportunidade para defender-se, ele começou a pregar o plano de Deus para a nossa redenção.

“E, ouvindo eles isto, enfureciam-se em seu coração e rangiam os dentes contra ele. Mas ele, estando cheio do Espírito Santo e fixando os olhos no céu, viu a glória de Deus e Jesus, que estava à direita de Deus, e disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, que está em pé à mão direita de Deus. Mas eles gritaram com grande voz, taparam os ouvidos e arremeteram unânimes contra ele...E apedrejaram Estevão, que em invocação dizia : Senhor Jesus, recebe o meu espírito. E pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes impute este pecado. E tendo dito isto adormeceu”. (Atos 7: 54 - 60.).

“No que me diz respeito, gosto que se escrevam tais livros contra mim; pois não só me faz bem ao coração, mas também ao póplite e ao calcanhar quando noto que através de mim, homem pobre e miserável, Deus, o Senhor, irrita e provoca a cólera e fúria de ambos, os príncipes do mundo e do inferno, que de maldade gostariam de despedaçar e explodir, enquanto eu estou sentado à sombra da fé e do Pai Nosso e fico rindo do diabo e seu séquito com toda a sua grande ira, gritaria e repelões. Nada conseguem com isso, a não ser que sua causa piora a cada dia que passa e promovem e melhoram a minha (isto é, a de Deus). (...)Pois estas coisas me deixam jovem, animado, forte e alegre” ( MARTINHO LUTERO)

Rev. Glauco Barreira Magalhães Filho
(Membro do Presbitério Anabatista da Igreja em Fortaleza)

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