sexta-feira, 1 de março de 2019

Uma visão antropológica sobre a concepção de liberdade no anabatismo do século XVI


No início da Idade Moderna emergiu um movimento cujo título parece inspirar violência e intolerância, mas não era essa sua finalidade. A Reforma Radical (irmãos suíços) trouxe uma mensagem de retorno ao padrão neotestamentário, manifestando-se contra a hegemonia católica e contra as pretensas reformas no catolicismo alardeadas pelos reformadores mais expoentes. Apesar da oposição à dogmática da época, os anabatistas não incitavam nem promoviam uma revolução à semelhança de Thomas Munzer, antes sua prédica não se limitava apenas ao conceito teórico da doutrina cristã do primeiro século, mas ganhava forma através das práticas devotadas através das quais transmitiam um viver consolidado na vida de Jesus. As bem-aventuranças ensinadas nos Evangelhos, por exemplo, serviram de base para sua conduta e fé, podendo, a partir delas, fazermos uma reflexão serena sob o olhar de um atento observador para chegarmos a uma conclusão sob este prisma e não de quem forçosamente estigmatizou o movimento como intransigente.
Clifford Geertz nos faz compreender alguns aspectos do caráter religioso de um determinado grupo quando explicitou que:

A religião nunca é apenas metafísica. Em todos os povos as formas, os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma aura de profunda seriedade moral. Em todo lugar, o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não apenas encoraja a devoção como a exige; não apenas induz a aceitação intelectual como reforça o compromisso emocional... Concebe-se que a fonte de sua vitalidade moral repousa na fidelidade com que ela expressa a natureza fundamental da realidade.

A transcendência anabatista, desta forma, revela-se quando houve a tentativa de superar os vícios religiosos, bem como de reincorporar a identidade primitiva através das mesmas práticas de Atos. Esse elo com o sagrado revela o caráter estritamente cristão na busca pela pureza e essência de sua natureza. Mesmo após séculos de distância, a proximidade e o alinhamento com o que “foi” e o que eles “queriam ser”, baseados nos mesmos princípios neotestamentários, identifica a certeza de suas convicções. Outrossim, a rejeição àquilo considerado profano, em vistas da manipulação das forças existentes no canon bíblico, qualificava-os como guardiões de seu tempo dos preceitos sagrados. Sua firmeza era tão intensa que apesar dos julgamentos inquisitoriais, seus algozes não conseguiram fazer com que negassem sua fé, dando provas mais do que convincentes do vínculo que guardavam.
Essa conduta pacífica, mesmo diante das piores agruras, fez surgir o espírito anabatista da tolerância e da liberdade religiosa. Suas ações sinalizavam clamores profundos sobre o ideal de poder professarem sua fé sem objeções e sem as imposições papistas ou imperiais. Esse “ethos” (maneira de ser e pensar) próprio do grupo faz com que o martírio, ocorrido em muitos casos, fosse o ponto central para compreendermos até que ponto estavam dispostos a ir para testemunharem a prevalência de sua fé. Assim, a dimensão espiritual de suas convicções estava situada no mais auto grau da espiritualidade, pois não havia noutros grupos igual sentimento de padecer para ver prevalecer o bom senso e a boa mensagem predita nas Escrituras. As vidas segadas serviram de referencial da liberdade, visto que alguém não poder professar livremente sua fé e atestar suas convicções passou a ser observado com nova perspectiva a partir destes eventos.
A consciência anabatista refletiu em toda sua plenitude o Cristianismo autêntico. De modo que podemos pensar que apesar de possíveis discórdias entre sujeitos das mais distintas convicções religiosas, os anabatistas sempre seriam e foram respeitosos pela fé dos outros. Certamente, não fugiram do debate e suas nobres pretensões serviram para encaminhar para a verdade através de uma pregação pacífica, tanto em palavras como em obras.    


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