segunda-feira, 1 de abril de 2019

Tiago, o anabatista de Voltaire



Cândido é um conto do filósofo Voltaire, publicado em 1759, no qual nos é apresentado Cândido, o protagonista, como alguém “privilegiado”: índole suave, juízo assaz reto e espírito muito simples, porém que passa por agruras e severas adversidades em determinada fase de sua vida após ser inserido num contexto sombrio, apesar de seu otimismo.
Morava num castelo considerado o maior de todos, onde residia também sua paixão, a senhorita Cunegundes. Recebera instrução em metafísico-teólogo-cosmolonigologia, como queira Voltaire, junto ao mestre Pangloss (o cerne desta doutrina seria provar que não existia efeito sem causa). Devido ao lapso de flertar com a senhorita Cunegundes foi expulso daquele que “era o mais belo dos castelos”. Caminhou sem rumo até encontrar os recrutadores prussianos. Foi para o exército e também para a batalha. Foi quando testemunhou muitas desgraças, mas principalmente o desamor do gênero humano. Do “paraíso” foi ao “inferno”. Vivenciou as superfluidades da vida no encanto das aparências até chegar aos dissabores das muitas mortes presenciadas. Ele que fora instruído na doutrina das causas e efeitos procurava uma razão para sua situação. Buscava ele a verdade ou a ilusão?
Cândido consiste numa negação ao sistema leibniziano, ou seja, é oposto ao otimismo na vida. Uma negação das palavras de Pangloss: “...que as coisas não podem ser diferentes; pois, tudo sendo feito para um fim, tudo é necessariamente para o melhor fim” (p. 4). E qual a mensagem central da filosofia de Voltaire? O que está ruim pode ficar ainda pior? Voltaire duvidava de Leibniz neste ponto, porque enquanto Leibniz acreditava na justiça divina para regular a vida em sociedade, por exemplo, Voltaire, após duras experiências e dissabores com as condutas impróprias dos homens, não queria aceitar a possibilidade de as situações melhorarem. Via a realidade sem expectativa de mudanças benéficas, muito pelo contrário, por mais que se tentasse sair de situações degenerativas mais ocorrências apareciam para que o indivíduo não pudesse se sobressair. E o anabatista do conto, o que representa?
Por entre seus dilemas surge Tiago, o anabatista. Um indivíduo de caráter, de honestidade e disposto a ajudar. Não sei se Voltaire falava em tom de ironia ou de respeito sobre Tiago, o anabatista, mas de uma forma ou de outra, destaca-se o valor moral daquela figura que em meio ao enredo da história ajuda o desprezado e humilhado Cândido. Como ele mesmo narra. Pelos vistos, Tiago, o anabatista, é um personagem de boa índole. Apresentado como o diferente de todos os sujeitos participantes do enredo, principalmente dos religiosos. Ao contrário dos outros que negaram ajuda ao desalentado Cândido, Tiago foi o único que estendeu sua mão para ajudá-lo, e posteriormente recebeu Pangloss com o mesmo propósito.
A ação do anabatista é citada a semelhança do bom samaritano, descrita em Lucas 10:30-37. Sobre o ato abnegado de Tiago, contrário ao religioso católico, Cândido afirmou: “Bem que mestre Pangloss me dizia que tudo está o melhor possível neste mundo, pois sinto-me infinitamente mais tocado por vossa extrema generosidade do que pela dureza daquele senhor de casaco preto, e da senhora sua esposa”(p.14). Para aumentar o respeito pelo anabatista, após ter encontrado seu mestre (Pangloss) mendigando devido à invasão e destruição do castelo onde residia, pelos búlgaros, viu-se obrigado a pedir novamente amparo a Tiago. Tiago vendo a necessidade imediata de Pangloss não hesitou em também ajudá-lo. Pangloss era, naquele momento, um maltrapilho sujo e imundo, desprezado à própria sorte, faminto e portador de uma DST (sífilis). Foi tratado a expensas de Tiago; foi curado parcialmente, pois a doença lhe assaltou um olho e um ouvido, mas mesmo assim recebeu trabalho do anabatista. No entanto, segundo Voltaire, não podemos ser otimistas ao ponto de acreditarmos na beleza da vida sem a devida reflexão. Tiago foi obrigado a ir à Lisboa com fins comerciais. Na viagem de navio sobreveio uma grande tempestade na qual ceifou a vida daquele cristão fiel e lançou Cândido e Pangloss novamente à própria sorte. Tiago numa ação altruísta salvou um dos marinheiros da morte, porém a sua própria não conseguiu salvar: foi lançado no mar bravio que o engoliu sem piedade. Cândido viu a cena e ficou chocado, olhando seu benfeitor desaparecer para sempre.
Diante do exposto, qual a reflexão que podemos extrair deste conto sobre o anabatista? Primeiro, terá Voltaire percebido que o anabatismo demonstrava o perfil do cristão cuja vida estava orientada pelas Escrituras? O apóstolo Paulo exorta os romanos à prática da caridade (Rm 13:8-10) e a epístola de Tiago assevera à prática para confirmação da fé (Tg 2:1-20). Segundo, nos momentos de angústia e aflição, Cândido teve contato com pastores suíços dos quais não recebeu favor algum, antes, desprezo e apatia; seria isto uma intenção de apontar a má conduta de algumas vertentes religiosas cujo discurso enfatizavam as Escrituras, mas que o cumprimento das mesmas fora esquecido? Terceiro, Voltaire quis compará-lo à descrição do verdadeiro seguidor de Cristo contida na epístola a Tiago, tornando isso evidente devido a utilização do mesmo nome? Quarto, seria sua intenção desabonar a Deus, porquanto apesar dos homens provocarem autoflagelo à raça existe sempre alguém bem orientado disposto a ajudar? Quinto, seria por ironia que o fazia tentando associá-lo ao pensamento leibniziano, julgando-o “o melhor de todos os cristãos” e como consequência “o melhor de todos os homens”?
Essas são algumas questões que podem fermentar nova discussão sobre o texto, mas retorno com uma das primeiras afirmações, Tiago foi um personagem diferente de todos os demais contidos no enredo. Enquanto a ira, a apatia, a discórdia, a avareza, a ambição, a discriminação, a inveja, o perjúrio, a falsidade, entre outras, são encontradas nos personagens do conto, Tiago é o único que carrega a pureza do Evangelho em toda sua plenitude. Ao tratarmos do anabatista neste artigo, fazemos referência ao movimento cujo fim era o retorno ao Primitivismo Cristão, àqueles que não queriam viver nos ditames desta vida, mas segundo os propósitos do Cristo bendito. Voltaire apresentou Tiago, o anabatista, devido à hegemonia católica que impregnava nos seus seguidores a marca de únicos servos de Deus. No entanto, pela crítica de Voltaire, o catolicismo não poderia reivindicar esse título, mas pessoas simples que viviam quase que despercebidas na sua fé religiosa despontavam com maior ímpeto para os valores do autêntico Cristianismo. Tiago é representando como o verdadeiro cristão e nos ensina a viver o pleno Cristianismo, ou seja, o Cristianismo prático.

Por Heládio Santos
Bacharel em Ciências Sociais
Especialista em Teorias da Comunicação e em Teologia Histórica e Dogmática

Referências
Voltaire. Cândido. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 

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