segunda-feira, 4 de junho de 2018

Os Montanistas e o Cristianismo genuíno


Quando Jesus encontrou Mateus, ordenando, em seguida, que deixasse seu posto fiscal para segui-lo; quando Pedro, João e Tiago foram chamados para deixarem de lado a pescaria a fim de se tornarem pregadores exclusivos do Evangelho; quando competiu a Igreja se concentrar durante dez dias em Jerusalém para orar, em intenso clamor, pelo Espírito da promessa; quando Paulo abnegou sua posição religiosa e cultural, tendo em vista se dedicar ao ministério vocacional de apóstolo; todos não viveram experiências “exageradas” aos olhos convencionais e seculares? Quando o próprio Cristo, enquanto homem, jejuou durante quarenta dias; quando não descansava durante as noites, pretendendo dedicar-se à oração; quando pregava duramente contra a hipocrisia farisaica, desnudando o caráter medonho desse grupo religioso; não estava ele propondo um caminho a seguir bem diferente do convencional e tradicional? Esse comportamento incomodou as tendências religiosas porque se erigia contra o marasmo religioso reinante.   
A internalização daqueles comportamentos prenunciou doutrinas como a renúncia aos bens materiais (Mateus 19:16-24), sobre a renúncia à própria vida (Mateus 16:24-26), com a máxima que dizia o modo de ser verdadeiro de um discípulo de Cristo: “Assim, pois, qualquer de vós, que não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo” (Lucas 9:33); também revelou as intenções divinas sobre a negação das paixões carnais (Colossenses 3:5) e o apego àquilo que estava sendo revelado e, ainda, por ser revelado em posteriores eventos.    
          Diante do exposto, percebe-se que o Cristianismo foi fundado sobre princípios bem diferentes da vida cotidiana, sendo privilegiados aqueles que tiveram a oportunidade de ouvir a pregação do Evangelho direto da fonte. Esses princípios não se restringiram ao modus daquele tempo, já que se tratava da apresentação de conceitos absolutos e imutáveis, regidos pelos atributos invariáveis da Divindade. Apesar disso, o pensamento reinante dentre a maioria das vertentes cristãs modernas foi de que essa visão e seu conjunto de práticas estavam limitados ao cânon bíblico, não devendo ser aplicada sua regra no todo aos seguidores posteriores, mas em parte, muito embora esteja claro no texto bíblico a abrangência e a amplitude da soberana vontade sobre seus preceitos. Deste modo, por razões alheias e diversas, preferiram deixar de lado a possibilidade de reprodução daquelas práticas nos movimentos posteriores ao Cristianismo Primitivo (certamente, essa mentalidade em muito contribuiu para a corrente “cristã” de liberalismo teológico e se mostrou contraditória já que muitos destes movimentos reivindicam ligação com o primitivismo sem guardarem seus postulados). Afora isso, somos impelidos a acreditar que esta aceitação restritiva rejeita também a pura pregação, o puro comportamento e as muitas ações neotestamentária, pois, através das diversas tentativas, fazem releituras daqueles eventos dando outras interpretações a que pretendiam os protagonistas bíblicos e readaptam os preceitos segundo a própria conveniência. O erro de tomar a revelação divina e sujeita-la à mentalidade humana com seus incrementos produziu o misto entre Cristo e belial, prática rejeitada pelo apostolado severamente, visto que essa mistura provocou um hibridismo ocasional, diminuindo o poder de subsistência das verdades bíblicas, incorrendo na ausência da providência divina e abrindo precedentes para a formação de um “cristão” adaptado, modelado e sujeito às tendências culturais, aos processos de inovação temporal e às políticas eclesiásticas dominadoras.
         Essa impressão herdada da teologia das reinvenções (termo nosso referente à maneira de pensar a teologia com adaptações) projetou a possibilidade e a necessidade de algo que não deveria ser possível nem necessário: alterar sensivelmente o legado de Cristo e de seus apóstolos. Quem olha o Cristianismo de hoje verifica um movimento profundamente alterado, modificado e recriado, confirmando a tese de que o hidridismo evolutivo do cristianismo produziu outro movimento, fugindo à regra primordial de ser o que era no princípio. Essa regra de conservação, apesar de rejeitada pela corrente híbrida, repousou serena nos grupos marginalizados que viveram paralelamente àqueles impostores da fé cristã. Logo, quando tratamos de movimentos como o Montanismo, devido à rejeição aos postulados apostólicos e não somente a sua história, faz-se ouvir aquele eco ensurdecedor de que ele não representou o puro Cristianismo. Por qual razão? Em razão de Eusébio de Cesareia, um historiador bajulador de Constantino e adepto da teologia das adaptações, assim ter falado? Então, é preferível acreditar em alguém que não foi fiel ao paradigma da eclesiologia primitiva a acreditar em quem queria viver segundo aqueles preceitos?
         A rejeição aos montanistas é tão grande que foram taxados como a heresia mais antiga que surgiu na História da Igreja. Apesar disso, devemos fazer uma pergunta: eles foram heréticos ou reacionários? Quais diferenças devem ser apresentadas para podermos extrair uma compreensão mais coerente dentro da pretensão do texto? O parecer de alguns estudiosos sobre o assunto poderá nos amparar nesse desafio.
         Para John de Soyres: Nossa conclusão é que não havia nada [no Montanismo] oposto ao credo. Anne Jensen afirmou: A erudição moderna demonstrou a ortodoxia essencial do movimento original da Frígia. Sheila E. McGinn reforça a informação quando, referindo-se aos oráculos, enfatizou: Estes poucos oráculos demonstram a ortodoxia doutrinária da Nova Profecia – um ponto que agora é uma questão de consenso entre os estudiosos montanistas. Mesmo quem se opunha religiosamente ao movimento, mas dedicou-se a uma compreensão sensata do movimento soube reconhecer seus valores. O estudioso jesuíta Walter J. Burghardt asseverou: Não posso encontrar evidências convincentes de que o Montanismo primitivo fosse culpado de heresia. David Wrigth confere mais um entendimento equilibrado: Sem demora, é óbvio que [o Paráclito do Montanismo] não tem nada a ver com o complemento da regra de fé ou a apresentação de novas revelações.
A evidência mais concreta que podemos aplicar ao nosso raciocínio para validar o Montanismo como autêntico movimento cristão, oriundo do anseio de querer ser a Igreja Primitiva de seu tempo, é Tertuliano. Tertuliano se apresenta não apenas como teólogo que vai confirmar as convicções montanistas, alinhando-as com as de Atos e das Epístolas, mas como membro efetivo de uma Igreja pura. Tertuliano rejeitou a Igreja em caminhos de desvio pelo seu envenenamento com o mundanismo da época, desqualificando-a como uma instituição séria com veia espiritual. A sensibilidade tertulianista foi tão profunda que conseguiu absorver a pregação de Montano, Maximila e Priscila sem se opor, visto que era a mesma pregação de Atos, e assim que pode rumou para a comunidade montanista sem pestanejar. 
Portanto, muitos estudiosos do assunto e não meros expectadores que se deixam alienar por opiniões diversas têm confirmado as orientações do Montanismo, versando sobre seu apego ao conceito primeiro da fé cristã. Essa corrente minoritária de pensadores têm tido a sensatez para compreender um dos movimentos mais incompreendidos da História do Cristianismo e demonstrar pela argumentação consistente a coerência de Montano e de seu grupo.

Heládio Santos
Prof. Instituto Pietista de Cultura

Referências
Burghardt, Walter J. Primitive Montanism: Why Condemned? in Dikran Y. Hadidian (ed.), From Faith to Faith: Essays in Honor of Donald G. Miller on his Seventieth Birthday (Pittsburgh: The Pickwick Press, 1979), p. 340.
Jensen, Anne. Prisca - Maximilla - Montanus: Who was the Founder of ‘Montanism’? in Elizabeth Livingstone (ed.), Studia Patristica, vol. 26 (Leuven: Peeter's Press, 1993), p. 148.
Soyres, John De, Montanism and the Primitive Church (Cambridge: Deighton, Bell and Co., 1878), p. 31.
Mcginn, Sheila E. The Montanist Oracles and Prophetic Theology, in Elizabeth A. Livingstone (ed.), Studia Patristica, vol. 31 (Leuven: Peeter’s Press, 1997), p. 132.
Wright, David F. Why were the Montanists Condemned? Themelios, 2, 21-22 (1970).

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