quarta-feira, 10 de abril de 2019

O ecumenismo, a particularidade religiosa e a verdade


A religião passa por um processo distinto atualmente. Muitas das antigas crenças estão sendo esquecidas ou consideradas ultrapassadas, dando lugar a uma perspectiva mais humanizada do que propriamente divinizada. Pelo lado do Cristianismo, o homem cristão não quer ser só um despenseiro de Deus (em alguns casos), mas também aquele que está começando a interferir nos estatutos sagrados considerados invioláveis e imutáveis. As mudanças nos fundamentos e na identidade cristã já desde muito tempo vem sendo observadas, mas agora está atingindo um patamar de maior amplitude, em vistas do cumprimento das predições proféticas explicitadas nas Escrituras.    
Em um mundo que caminha para uniformizar o pensamento em diversos segmentos, o ecumenismo ganha força. Talvez pelo fato de os indivíduos não estarem mais intencionados em defender a verdade absoluta, antes, preferirem proclamar um ideal de respeito e de conciliações mesmo que seja com o irreconciliável. Com um discurso de maturidade entre os diferentes decorrente das danosas experiências do passado, com a premissa de não criticar as convicções dos outros e com anseios mais místicos do que espirituais, o ecumenismo arrola todas as vertentes que caminham com uma identidade híbrida. A identidade híbrida constitui-se de um perfil no qual há uma mistura entre aquilo que se crê e aquilo que aparentemente não se crê, mas que em nome de um pacto para uma pacificação religiosa muitos paradigmas tradicionais que outrora se opunham, agora, se adequam a uma realidade cujo teor tenta harmonizá-los. Essa tendência não acabará com a religião alheia, mas colocá-la-á sob tutela de quem exercerá um poder universal no futuro e que reivindicará a substituição do culto a Deus para o culto a sua pessoa dado o sucesso que alcançará. Um só agente acima de tudo e de todos recebendo a veneração de todos os grupos religiosos é o ápice da cultura ecumênica. Logo, evidencia-se a crise da particularidade religiosa. Anibal Pereira dos Reis (p.18) registrou o ideal ecumênico primeiro encabeçado pelo catolicismo romano e, principalmente, pelo papa, ao afirmar:

O ecumenismo tem como tarefa mobilizar todos os expedientes em vista desse objetivo unionista.
O cardeal Ernesto Ruffini, na assembleia de 18 de novembro de 1963 do Concílio Vaticano II, assim definiu – e muito bem – o ecumenismo: ‘um apostolado especial para a obtenção da unidade sob a autoridade do papa’.
O primordial intento do ecumenismo é levar as áreas católicas distantes da comunhão romana a se renderem ao olimpo do Vaticano, o papa, o centrum unitatis (o centro da unidade).

A particularidade religiosa qualifica as diversas convicções quanto ao sagrado, necessitando ser o que sempre foi para deixar sua marca enquanto movimento independente. Sob um olhar sociológico, a particularidade e as diferenças entre as diversas religiões tornam esses objetos de estudo ainda mais atraentes, visto poder manifestar vieses instigantes e intrigantes aos quais um bom pesquisador se debruçará para explicitar suas peculiaridades, ou seja, há um campo fértil e profícuo para análises, muito mais promissor do que a da harmonização dos diversos credos a partir de pontos convergentes. A individualidade religiosa possibilita também um debate acerca da verdade. Obviamente, a ponderação não poderá passar por outro referencial se não o da Bíblia Sagrada, já que ela traz o autêntico alinhamento com Deus e sua vontade (sei da crítica que muitos fazem a este quesito, acreditando existirem outros instrumentos que revelam a Divindade. Entretanto, como o ponto central das Escrituras é o Cristo, o Messias e o Mediador, não sobrou absolutamente nada para outros cujos manuais e credos divergem da mensagem cristã reivindicarem qualquer porção de revelação divina). Por assim dizer, o rompimento com a sua particularidade está associado a secularização. Peter Berger (p.139) nos dá uma luz para compreender esse fenômeno:

A secularização acarretou um amplo colapso da plausibilidade das definições religiosas tradicionais da realidade. Essa manifestação da secularização a nível de consciência [...] tem o seu correlato a nível sócioestrutural (como ‘secularização’ objetiva). Subjetivamente, o homem comum não costuma ser muito seguro acerca de assuntos religiosos. Objetivamente, ele é assediado por uma vasta gama de tentativas de definição da realidade, religiosas ou não, que competem por obter sua adesão ou, pelo menos, sua atenção, embora nenhuma delas possa obriga-lo a tanto. Em outras palavras, o fenômeno do pluralismo é um correlato sócioestrutural de secularização da consciência.

O próprio indivíduo não mais aceita ou aprova a estrutura tradicional de sua religião, não julgando razoável guardar o dogmatismo de sempre em meio a tantas inovações e modificações na perspectiva de vida do mundo. Essa mentalidade deixa de ser mais individualizada para ganhar um ar mais plural, ou seja, buscando novas alternativas e diversificando para atender um público maior. Vê-se, assim, a perda da plausibilidade na religião. Essa plausibilidade interfere sensivelmente naquelas religiões pseudocristãs, muito embora se julguem cristãs, não guardaram a sã doutrina para serem nominadas como seguidoras fiéis do Mestre Jesus.  
Entretanto, não pretendemos aqui alçar uma bandeira de batalha contra todas as demais religiões. Jamais! O Anabatismo desde sua formação e origem cultivou um ideal de respeito às outras vertentes religiosas, muito embora tivesse sido perseguido tanto por católicos quanto por protestantes no século XVI, nunca abraçando o diálogo ecumênico. Entendia que existia uma verdade posta para além do olhar das autoridades religiosas na qual o homem deverá prestar submissão a Deus e não a homens ou a dogmas religiosos. Era necessário conhecer a verdade e através dela proclamar a única e sólida maneira de se alcançar o favor divino: a fé em Cristo. Essa mentalidade era tão presente na comunidade anabatista do Medievo que Arnold Snyder (P.20-21) demonstra um pouco de suas convicções ao falar que a vida contemplativa dos anabatistas não se limitava ao conhecimento teórico, mas também vivenciavam na prática o ensino:
           
A ênfase anabatista em uma igreja de crentes teve como consequência que todos os membros da igreja deveriam ser biblicamente treinados. Embora a maioria dos anabatistas não pudesse ler ou escrever, eles ainda sabiam de memória extensas porções das Escrituras, organizadas por temas. Vez após vez, os Anabatistas na prisão surpreenderam seus captores recitando de memória os fundamentos bíblicos de suas crenças, por capítulo e versículo. Esperava-se que os membros assumissem sua fé e fossem capazes de explicá-lo e defendê-lo biblicamente. As crônicas mostram uma quantidade notável de conhecimento bíblico por parte de homens e mulheres comuns que abraçaram o anabatismo.

Thomas Munzter
O conhecimento das Escrituras com paixão devotada a paz e a comunhão levou estes servos de Deus a entenderem as situações dos demais. Com uma vida singela, fundamentada nos primeiros passos da Igreja Primitiva, preocupavam-se com a forma como a Palavra de Deus era anunciada em sua época, pois não correspondia à prática ensinada pelas recomendações apostólicas, antes curvavam-se ao ufanismo imperante. A compreensão anabatista sobre a necessidade de um diálogo respeitoso, mas não desprezando as identidades religiosas, deu-se através de situações muito complicadas, talvez para demonstrar o poder de resiliência do anabatismo.
Martinho Lutero
Enquanto, por exemplo, Martino Lutero debatia com Ulrich Zwinglio sobre a ceia e nunca chegavam a um consenso devido à ardência dos seus espíritos voltados para uma interpretação deles próprios; enquanto Lutero trocava farpas e insultos com Thomaz Munzter acerca de quem melhor representava o Evangelho, porque para Lutero, Munzter era considerado um instrumento de satanás na mesma medida que Munzter dizia que Lutero era a virgem pura da prostituta babilônica, Conrad Grebel advém com o mesmo espírito cristão apostólico tratando com muito respeito Thomaz Munzter, reformador revolucionário do século XVI, dando um exemplo primorosa na condução do esclarecimento bíblico. Em sua carta Munzter, verificamos esses ideais nas entrelinhas: 

Amado irmão Tomás: por amor a Deus, não se surpreenda se nos dirigirmos a vocês sem título e orarmos por vocês como irmãos para continuar a nos corresponder, e que sem nos propormos ou nos conhecermos, começamos o diálogo. O filho de Deus, Jesus Cristo, que se apresenta como o único mestre e o único chefe de todos aqueles que devem ser salvos e que nos ordena sermos irmãos por uma palavra comum para todos os irmãos e crentes induziu-nos e obrigou-nos a estabelecer amizade e fraternidade [com você] e expor os pontos que se seguem. Nós também fomos movidos pelo fato de você ter escrito dois panfletos sobre a fé espúria. Portanto, interprete bem, através de Cristo nosso Salvador. Se Deus quiser, será útil e benéfico para nós. (Yoder: 133)

Conrad Grebel
Percebe-se em Grebel um apreço não pela interpretação particularizada, mas por aquela que vem de uma inspiração a partir das Escrituras, ou seja, a busca pela verdade no texto sagrado. Para Conrad Grebel a verdade está acima do debate religioso de modo que a cegueira do dogmatismo deveria ser superada pela pacificação e quietude de espírito para se chegar à conclusão coerente da Verdade. Este modo de exame das Escrituras permitiria não só a revelação da vontade divina, mas também a superação da celeuma religiosa e a consciência de que religiões erram ao não adotarem exclusivamente o cânon bíblico.     

Berger, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
Reis, Anibal Pereira dos. O Ecumenismo e os Batistas. Editora Caminho de Damasco: São Paulo, 1971.
Yoder, John H. Textos Escogidos de la Reforma Radical. Biblioteca Menno, 2016.

Snyder, C. Arnold. De Semilla Anabautista. Pandora Press: Ontario, Canadá, 1999.

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