Foi numa desalentada investida contra o curso natural das coisas que o homem conquistou sua independência. Na ocasião, ou na época após a sua criação, ele pensou de forma equivocada em tomar suas próprias decisões e, iludido por palavras tentadoras agiu, sem perceber as muitas dissonâncias que ocorreriam por causa do seu ato. Por certo, tamanha individualidade compeliu contra a vontade de Deus e a relação existente entre homem e Deus foi quebrada, tendo que ser reestruturada em seguida.
Alguns anos se passaram e um outro problema agravou ainda mais aquela situação. Sob o mesmo grito de independência e à semelhança do que diria um certo filósofo anos após aquele período, quando afirmou: “Tomemos o governo da vida e remodelemo-lo”, os homens fundiram suas idéias inovando e estabelecendo um sistema social e político. Este momento é comprovado quando da construção de Babel e na distribuição do povo pela terra, constantes nos registros de Gênesis 10 e 11. As conclusões e decisões que ali chegaram culminaram naquilo que denominamos ser hoje o Estado.
Nesta ocasião, os homens se reuniam para diálogos e conversas sobre assuntos vãos desaprovados pelo Senhor Deus. Na verdade, Deus viu que eles planejavam algo extremamente indesculpável perante sua pessoa (Gn 11:6). O Senhor via neles a falta de fé nas suas promessas (Gn 9:8-16) e não tardou em tomar uma decisão que alterasse aquele quadro.
Um único idioma existia até aquele momento, tornando livre e possível qualquer colóquio. Mas após tal movimento rebelde, Deus distribuiu outros idiomas entre os homens ficando sem se entenderem (Gn 11:7). Eles mesmos, diante da reprovação do Senhor, acarretaram aquela miscelânea.
Após aquele tumulto, Deus “os dispersou dali pela superfície da terra” (Gn 11:8a) e deu a eles sua parte na herança (Dt 32:8), exatamente resultando naquilo que eles mais temiam. Consequentemente, o medo latente tornou-se evidente. Daí, terem começado a constituírem suas sociedades buscando apoio entre si. Uma explicação a este fenômeno foi dada da seguinte maneira:
“O que dá nascimento a uma cidade disse eu é, creio, a impotência de cada indivíduo de bastar-se a si próprio e à sua necessidade de uma multidão de coisas; ou pensas existir outra causa qualquer na origem de uma cidade?”
(Diálogo de Sócrates e Adimanto, em A República, de Platão)
Apesar disto, ao examinarmos o livro de Gênesis chegamos a conclusão de que o separatismo ocorrido não estava nas intenções de Deus.
Partindo do princípio, encontramos um só casal, de quem todos nós viemos a existir. Daí concluímos que temos a mesma origem, o que tornaria inviável qualquer separação. Por quê? Devido a primeira causa determinar uniformidade para aquilo que Adão e seus descendentes fariam e teriam (Gn 1:28). Eles tinham ao seu dispor a estrutura para formar uma comunidade unificada atribuindo honras e glórias a Deus, entretanto não foram sensíveis aos interesses divinos. Complementando a proposição, nunca se ouviu de Deus prédica alguma sobre um movimento separatista na humanidade. A ambição do gênero humano pós-pecado é que culminou na situação atual. Mas Deus, em sua soberania permitiu que acontecesse tal revolução para provar ao homem a sua incapacidade, ocultada pelo seu desejo egoísta de glória. O governo de Saul em Israel pode ser destacado como um dentre os muitos fatos ocorridos entre as nações que evidenciaram tal efeito (I Sm 13:9-14).
Mas, com o advento estatal e a estabilização dos povos, que se ocuparam com os anseios da vida patriótica, veio a necessidade de se normatizar os deveres de cada indivíduo em relação a sociedade, com o objetivo de promover a soberania do Estado, a ordem e a decência, limitando-se a um determinado território. Porém, apesar de todo o esforço empregado pelas autoridades competentes, sabemos que não é nada fácil policiar e disciplinar os cidadãos. Não só pelo fato de haver falta de conscientização, mas também pela conjuntura estabelecida não ter os verdadeiros fundamentos.
Aristóteles, um dos maiores pensadores da história, discursou sobre alguns aspectos deste assunto, afirmando o seguinte em sua obra intitulada Política:
“Para a administração conveniente da justiça e a distribuição da autoridade é necessário que os cidadãos se conheçam uns aos outros; onde não for assim, muitos erros e males resultarão, tanto no uso da autoridade como na distribuição da justiça; não podemos decidir arbitrariamente como será o caso com a população excessiva...”
Diante de tamanha expressão filosófica não podemos deixar de dizer que segundo o curso do mundo esta metodologia está bem pautada e é de grande relevância. Sem dúvida! Porém, isto é a tentativa de se tapar um erro humano.
Ora, certamente a separação mencionada acima provocou muitos efeitos danosos e alguns tão grandes que ninguém imaginaria. Na verdade, o orgulho do homem despontado desde a sua queda está cada dia mais aguçado. Isto culminou substancialmente para que houvesse conflitos internos e externos nas nações. Na Antigüidade, pelo fato dos povos estarem descobrindo novos horizontes e alastrando seus impérios, o Estado também se preocupou com a arregimentação de homens para confrontos e batalhas. Tal organização marcou profundamente a história das nações, inclusive a hebraica.
Por volta do ano 1020 a.C., quando foi estabelecido o reino de Israel e sucessivamente reinaram Saul, Davi e Salomão, sob o descontentamento de Deus dita ao profeta Samuel (I Sm 8:6-7), grandes oscilações marcaram aqueles 100 anos seguintes até chegar ao ano 929 a.C., quando o poder foi divido entre Samaria e Jerusalém. O reino de Israel (10 tribos) chamado também Reino da Samaria (nome da capital), foi conquistado pelos ninivitas em 722 a.C. O da Judéia (tribo de Judá), com capital em Jerusalém, foi tomado pelos babilônios em 587 a.C. Além disso, alguns críticos, cheios de ceticismo, escreveram que no tempo dos juizes os israelitas viveram “um melancólico catálogo de derrotas, os hebreus perderam a coragem, desertaram do culto ao seu próprio Deus, Jeová, e adoram Baal e Ashtaroth...” (História Universal, H.G. Wells, Volume III, pg. 266)
A ideologia predominante entre os judeus nesta fase periclitante de sua história política e, sobretudo, depois da queda do seu reino em 587 a.C., era que ao Messias prometido caberia restabelecer sua independência. Este pensamento do indivíduo governar o todo estava uniformizado com o ensinamento que viria marcar outra época posterior àquela. Sócrates, filósofo ateniense, acreditava que seria melhor para o Estado ser governado por uma só pessoa, que ele qualificava como “aquele que sabe”. Entretanto, sabemos que o Reino de Deus regido por Jesus, não vinha com aparência exterior, equipado com recursos estatais igualando-se aos demais povos. Viria, sim, com uma aparência interior objetivando alterar os propósitos dos corações dos homens (Lc 17:20-21).
Muitos anos se passaram até as vésperas do fim da Idade Moderna, sem muitas distinções dos relatos anteriores. Neste período encontramos muitas revoluções que ocorreriam em diferentes partes do mundo. E por mais que tenham sido violentas e sangrentas, alguém disse, em uma delas, uma coisa extremamente lúcida, moderada e correta. Winstanley, o principal líder do movimento denominado diggers (escavadores) na Inglaterra, afirmou:
“A propriedade (...) divide o mundo inteiro em partes e é a causa de todas as guerras e derramamento de sangue e contendas por todo lado (...) Quando a terra voltar a ser um tesouro comum, como deve ser (...) então a animosidade existente em todos os países chegará ao fim.”
A Igreja
A Igreja, ao contrário do Estado, é a concretização daquilo que Deus previa para a humanidade. Ela, como corpo místico de Jesus, encontra-se espalhada pelos quatro cantos da terra desconsiderando qualquer fronteira. É uma instituição divina que ninguém pode destruir, “Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela...” (Mt 16:18).
A Igreja nasceu no dia de Pentecostes, notabilizando na história um impacto que marcaria muitas vidas. O termo grego para Igreja, ekklesía, aparece nos capítulos 16 e 18 de Mateus. Esse termo quer dizer “grupo chamado”. Acreditamos que estes, de quem fala os textos do Evangelho, referem-se a todos quantos foram resgatados do lamaçal do pecado, purificados pelo sangue de Jesus e hoje vivem em novidade de vida. A comunidade capaz de viver em comunhão com Deus, por intermediação de seu Filho Jesus, também pode ser chamada de os Eleitos de Deus (Eleição Condicional).
Fomos chamados para sairmos deste padrão ocasionado pela desobediência do primeiro homem, porém, fazemos parte do convívio comum independentemente de religião ou raça. Isto não quer dizer que devemos agir como todos. Devemos cumprir os deveres ordenados pelas autoridades competentes, sim, mas até ao limite de não ferirmos os preceitos divinos (Mt 17:24-27). Devemos agir por fé, e a fé não se limita as parametrizações do mundo. Por ela enxergamos “além mar”, ou seja, contemplamos as promessas da Bíblia encontrando forma e tornando iminente o grande dia da redenção total.
A Igreja deve ter um governo congregacional, não político, em que todos os crentes devem externar suas opiniões. Através do voto ela elege seus pastores, mestres, evangelistas e diáconos (somente estes mistérios e ofícios bíblicos vigoram para a Igreja hoje, já que os apóstolos e profetas serviram como alicerce) (At 6:2-6 e At 14:21-23). Quanto à administração dos bens, ela deve expressar seu ponto de vista também. A Igreja não deve ser dominada por um homem e sim, governada por uma comunidade de crentes local. Ela deve tomar todas as suas decisões inspirada e em comunhão com Deus com jejuns e orações (At 13:1-3).
A Igreja deve submissão a Cristo, fazendo sempre o que está determinado para ela (Ef 5:24). Nunca deve acrescentar à sua vida diária coisas que não foram ensinadas. A Igreja não deve criar novas formas de culto, inserindo, por exemplo, danças e músicas mundanas nas celebrações a Deus (I Co 4:6). A Igreja deve ter um padrão de vida inspirada na Bíblia, com os crentes vivendo em moderação, seriedade, sem envolvimento com o mundo e anunciando a Palavra com um testemunho sólido de fé.
Igreja e Estado
Em decorrência disto, perguntamos: Qual seria a relação entre Igreja e Estado? Na verdade, nenhuma! Uma coisa está desassociada da outra. Uma faz-nos olhar para o reino do mundo, enquanto que a outra nos eleva ao reino de Cristo.
O escritor de Hebreus, iluminado pelo Santo Espírito, ensina-nos nesta epístola acerca da esperança cristã, que nos impulsiona a buscar a pátria vindoura não considerando a presente permanente (Hb 13:14). Mesmo os crentes do Antigo Testamento tinham esta visão espiritual e confessavam que eram “estrangeiros” (Hb 11:13-16). O termo “estrangeiro” ali empregado realça com grande qualidade nossa intenção de mostrar que a verdadeira Igreja não compactua com as formalidades do Estado. Ela vive assim como viveu Abraão “...peregrinando na terra da promessa, como em terra alheia...”(Hb 11:9). Pedro intitula-nos forasteiros e peregrinos (I Pe 2:11), fazendo questão também de dizer que devemos respeitar todas as autoridades, entretanto, dar-nos a entender que não devemos nos juntar a elas (I Pe 2:11-17). Jesus ensinou esta distinção afirmando: “...Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”(Mt 22:21). Acerca do seu reino falou: “O meu reino não é deste mundo...” (Jo 18:36). Sendo assim, o nosso também não! Por isso afirmam as Escrituras: “... mas porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo...” (Jo 15:19). Desta maneira podemos ter a certeza que “... a nossa pátria está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fl 3:20).
Apesar das admoestações apostólicas, a Igreja do século IV passou por um esfriamento tal que suas vistas ficaram enevoadas e atraídas pelas seduções do poder. A narrativa seguinte complementa nossa opinião:
“Mas não demorou muito para que a antiga conduta de Israel ressurgisse na Igreja. Em torno de 300 d.C., a Igreja e o Estado uniram forças, nos dias do imperador Constantino. Constantino foi um político astuto. Tem-se dito que ele não era uma alma perturbada, e, sim, um político perturbado. Constantino estava a caminho de conquistar o trono do império romano quando teria tido uma visão de uma cruz, no céu. De acordo com essa estória, ele teria ouvido uma voz que dizia: 'Com este sinal, vencerás'. Constantino via o Cristianismo como um trampolim para ele dominar o mundo.
A Igreja e o Estado casaram-se de maneira similar ao que sucedera em Israel, quando os filhos de Israel pediram um rei. Fazendo um retrospecto, Constantino foi o motivo da queda da Igreja, e não da glória da Igreja! Dos dias de Constantino em diante, Igreja e Estado passaram a andar de mãos dadas. No começo de sua história, a Igreja era oprimida pelo Estado; mas a partir de Constantino, o Estado passou a usar o seu poder para oprimir aos que não eram cristãos.” (Uma Terceira Opção, Paul M. Lederach, págs. 47 e 48).
Os donatistas, da época de Agostinho, grande teólogo do passado, e que guardaram a doutrina dos apóstolos e profetas, criam que a Igreja era composta por um pequeno grupo de salvos, tirados de uma geração pecaminosa e pervertida. Eles criam que uma Igreja que abarcasse todos os cidadãos do império, com seus costumes e práticas, não poderia ser a Igreja de Jesus.
Como conseqüências do matrimônio efetivado entre Igreja e Estado evidenciamos a evaporação do conceito da graça, a corrupção de líderes tornando-os imorais e o paganismo religioso. O misticismo e a feitiçaria derrubaram as colunas que sustentavam aquela Igreja (hoje, aquelas Igrejas que fizeram as mesmas coisas acabarão como aquela). Outro conceito, o da não-resistência e do pacifismo, caiu por terra. Não havia mais a necessidade de arrependimento e nem de se ganhar outros para Cristo em missões. Porém, Deus não perdeu! Alguns historiadores afirmam que muitos grupos discordantes daquelas práticas fugiram ante este relacionamento e diante das duras perseguições. Guardaram a fé e conservaram os ensinos apostólicos, sim, desde os tempos primitivos da Igreja um remanescente fiel sempre guardou a Sã Doutrina.
A Igreja peregrina aguarda a volta de Jesus para consumar o verdadeiro matrimônio. As bodas do Cordeiro será uma festividade como nunca se viu, onde, somente aqueles que conservaram o azeite na lâmpada poderão entrar. O mundo continuará a mercê da fome, da discriminação social e de tantos outros males que serão manchetes em várias partes. Nem mesmo um crente é capaz de alterar este quadro! O que sobrevirá será apenas a conseqüência do governo do homem: "SABE, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos. Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus," (II Tm 3:1-4).
Pastor Heládio Santos
Membro do Presbitério Anabatista em Fortaleza
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