No início do século
XVI, a maioria dos protestantes pertencia, em termos gerais, aos movimentos
luteranos ou reformados. No entanto, muitas outras ramificações cristãs
minoritárias se desenvolveram rapidamente sem usufruírem prestígio e fama.
Quando
Lutero fixou suas teses na porta da capela de Wintenberg, iniciando a Reforma
em 1517, ele não imaginava a dimensão que suas ações iriam alcançar, apesar de
haver movimentos anteriores ao Protestantismo reivindicando fidelidade aos princípios
cristãos estabelecidos nas Escrituras cuja disposição para instaurar suas
convicções dependia apenas de liberdade.
Os
discursos dos reformadores sustentavam que a autoridade do papa e a tradição
católica defendidas pelo clero majoritário não eram confiáveis para uma teologia pura que
incentivasse práticas
cristãs fidedignas. Isso possibilitou um
redirecionamento desse olhar crítico
para a Bíblia isoladamente como fonte de autoridade e teologia para os protestantes.
Essa
compreensão inusitada diante do domínio católico permitiu uma ampliação da
disputa sobre a autenticidade dos livros apócrifos, ora bastante utilizados pelo
romanismo. Deveriam ser compatibilizados com a Bíblia ou deveriam ser desconsiderados
como normas de fé e conduta? A resposta estaria no anseio de muitos
protestantes que ao analisar os conceitos doutrinários também se apegavam a uma
conduta de análise acadêmica, transformando aquele exame num misto entre o
descobrimento do sentido escriturístico e a maneira pela qual deveria se moldar
a sociedade da perspectiva social, política e econômica.
A
Reforma “Magisterial”, como se convencionou denominar aquela atitude luterana e
calvinista - asseverava a necessidade de a igreja coexistir com o estado (os “magistrados”),
criando uma relação de interdependência na qual ambas poderiam interferir em
assuntos um do outro. Por exemplo, os magistrados poderiam decidir quem
assumiria cargos eclesiásticos, enquanto a igreja se beneficiária das benesses protetivas
de um Estado Protestante. No cantão de Zurique, na Suíça zwingliana, a igreja e
o estado estabeleceram esse modelo.
O
resultado dessa ação mista, Igreja e Estado, pelo viés Protestante, demonstrou ser
uma tentativa para assegurar êxito sobre as novas diretrizes emancipatórias do
movimento. Aliar poder espiritual ao temporal foi a solução encontrada para
barrar qualquer interferência estranha aos seus interesses, de modo que o
assédio e as típicas perseguições católicas seriam barradas pela proteção dos príncipes
amigos da Reforma.
Emergindo
desse contexto, os Radicais aparecem com uma pregação dissonante dos dois
maiores expoentes do contexto reformista. Não foram assim chamados por serem
extremistas religiosos, mas porque sua causa buscava um retorno às raízes do
profundo Cristianismo. Confirmavam a necessidade não apenas de uma reforma teológica
da igreja, mas a desvinculação entre o que era de Deus e o que era de César,
fazendo um trocadilho da pronunciação de Jesus. Visavam a promoção da convicção
individual, ou seja, tirar suas próprias conclusões sobre suas convicções sem a
coerção estatal. Era a chamada consciência individual. Além disso, a proposta
estava associada à liberdade de expressão que deveria ser respeitada em vistas
de ser uma decisão de foro individualizada, fosse o Estado católico ou
Protestante.
O
componente convicção (fé) era típico do pensamento da Reforma Radical ou
Anabatista. Sua insistência nesse quesito representava que cada indivíduo
poderia assumir suas responsabilidades enquanto cristão autêntico, cumprindo como
os requisitos pautados nas Escrituras para poder reivindicar o batismo por
convicção e não por imposição, como era nos territórios católicos e
protestantes. Para os Anabatistas, o batismo infantil era ineficiente para
cumprir com o real simbolismo apresentado nos Evangelhos, enquanto necessário
para o censo populacional nos países dominados pelo papa e pelos reformadores.
Certamente por isso os anabatistas foram muito perseguidos já que ensinavam a
necessidade de um batismo consciente e convicto para adultos outrora batizados
na infância. Esse “segundo batismo” era chamado de rebatismo e tido pelos
opositores como herético. Entretanto, a mentalidade anabatista era a que estava
alinhada com os ditames das Escrituras.
Muito
embora perseguidos pelas suas convicções, os Anabatistas tiveram que amargar perseguição
por outros motivos: por difamação, pois quem não era católico nem protestante
era chamado de anabatista.
Muitas
dessas ramificações pseudo anabatistas eram milenaristas, esperando o retorno
iminente de Cristo como previsto no livro de Apocalipse. Os “profetas de
Zwickau”, por exemplo, acreditavam em novas revelações do Espírito Santo nos
quais eram orientados a se prepararem para o próximo Apocalipse. Apesar de
muitos protestantes terem rejeitado esse movimento, é reivindicado como anabatista. Uma falsa suposição.
Thomas
Muntzer, um revolucionário que foi inclusive elogiado por Friedrich Engels,
parceiro de Karl Marx, propunha uma revolução agressiva, empunhando armas
contra seus adversários para instituição de um “reino de paz”. Que
contraditório a busca da paz pela guerra! Muntzer promoveu a Guerra dos
camponeses alemães (1524-1525), um marco da revolução social armada, na qual
milhares de camponeses foram mortos em uma batalha contra grandes exércitos
aristocráticos luteranos. O próprio Lutero apoiou os príncipes contra esta
revolução no seu tratado “Against the Murderous, Thieving Hordes of Peasants”.
Pelas palavras de Lutero sobre os revoltosos:
... esquecendo-se de sua
oferta, se envolvem em violência, roubam e se arrebentam e agem como cães
loucos. Por isso, é fácil ver o que eles tinham em suas falsas mentes, e
que as pretensões que eles fizeram em seus doze artigos, sob o nome do
Evangelho, eram nada além de mentiras. É o trabalho do demônio em que
estão, e em particular é o trabalho do arquim velho que governa em Mühlhausen,
e não faz senão provocar roubo, assassinato e derramamento de sangue; como
Cristo diz dele em João VIII: “Ele foi um assassino desde o início”. Desde
então, esses camponeses e pessoas miseráveis deixaram-se
desviar e, do contrário do
que prometeu, eu também devo
escrever deles o contrário do
que escrevi, e começar por
colocar o seu pecado diante deles, como Deus ordena a Isaías e Ezequiel, na possibilidade
de que alguns deles possam aprender a se reconhecer. Então eu devo
instruir os governantes como eles devem se comportar nessas circunstâncias.
Por isso,
alguns protestantes estavam dispostos a usar da violência política para
alcançar seus fins religiosos. Por exemplo, o duque francês
antiprotestante de Guise foi assassinado por um protestante francês em 1563.
Calvino ordenou o assassinato do rival protestante Michael Servetus, queimando-o
na fogueira por heresia em Genebra em 1553.
Por
outro lado, os autênticos reformadores radicais (anabatistas), eram pacifistas.
Michael Sattler demonstrou isso na confissão de Schleitheim. Menno Simons
(1496-1561), fundador dos menonitas, também assimilou o conceito acreditando
piamente que o pacifismo absoluto era o próprio coração do cristianismo e
rejeitava qualquer forma de cristianismo patrocinado pelo Estado.
Ao
colocarmos protestantismo e anabatismo em pauta, verificamos suas tendências
para questões de governo, tanto espiritual quanto para temporal. O
protestantismo reinventa o modelo católico, substituindo apenas o chefe
temporal, dedicando aos príncipes e outras instituições políticas o domínio e o poder do Estado e se
solidarizavam com eles. Suas normas passaram a ser restritivas e coercitivas, não
permitindo liberdade religiosa em seu território. O apego à segurança religiosa
e a preservação dos pilares que instituíram o protestantismo ecoam nesse
sentido. Os anabatistas, entretanto, não tinham e nem queriam uma pátria, pois
sua pátria está nos céus. Suas reivindicações não priorizavam o reino terreno,
visto que sabiam ser este efêmero, mas ensinavam com ousadia e coragem a
dedicação ao Reino Eterno, não feito por mãos humanas nem sob seu domínio.
Queriam restaurar o pensamento reinante na Igreja Primitiva que era desprovida de
apego aos valores terrenos, aos principados e potestades constituídos e ao
bem-estar social, muito embora prestassem honra às autoridades e aos estamentos sociais.
Apesar de serem arautos da verdade são esquecidos, ridicularizados e
menosprezados, mesmo que quisessem apenas valorizar os postulados apostólicos tais
quais foram postos, sem intervenções.
Heládio Santos
Referências
EG Rupp e Benjamin Drewery, Martin Luther, Documents of Modern History (Londres: Edward
Arnold, 1970), pp. 121-6.