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quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O batismo católico, o rebatismo e os anabatistas

O batismo é símbolo da regeneração. É a manifestação da experiência consciente e espiritual alcançado pela fé do confesso novo cristão. Foi na Idade Média muito reverenciada pelos anabatistas, tanto que, em muitos casos, perderam suas vidas pela prática bíblica do rito ordenado por Cristo. Não é sem razão que o nome anabatista provém deste misto de obediência a Deus e perseguição, porquanto revelou o apego genuíno à verdade bíblica, renegada pelo tenebroso catolicismo medieval e não discernida pelo Protestantismo. Assim, o batismo tem importância essencial para todas as discussões cuja pauta traz a Reforma Radical (nomenclatura atribuídas aos anabatistas que pretendiam restaurar os padrões neotestamentários, retornando às raízes do verdadeiro cristianismo).
Dentre os líderes mais emblemáticos do movimento, encontramos Michael Sattler,ex-prior do mosteiro beneditino de São Pedro da Floresta Negra. Ele foi possivelmente responsável pela confissão de Schleitheim, primeiro documento dos anabatistas suíços que reivindicava o cumprimento expresso das Escrituras. O diferencial de Sattler foi à forma de adesão ao movimento. Apesar de não sabermos detalhes sobre sua conversão, sabe-se que sua decisão foi muito bem pensada. Na confissão, versou sobre a primeira ordenança de Cristo nesses termos:
O batismo será dado a todos aqueles que aprenderam o arrependimento, a regeneração de vida e que acreditam verdadeiramente que seus pecados foram expiados por Cristo, e a todos quantos andarem na ressurreição de Jesus Cristo e desejem ser sepultados com ele na sua morte, para que possam ser ressuscitados com ele, e a todos aqueles que, com esse significado, requeiram-no (batismo) de nós e o requeiram por si mesmos. Isto exclui completamente o batismo infantil, a maior e principal abominação do Papa. Em tudo isso tem-se fundamento e testemunho dos apóstolos (Mt 28; Mc 16; At 2, 8, 16 e 19). Desejamos sustentar isso humildemente, porém firmemente e com convicção.
O texto acima é o primeiro ponto da Confissão. Encabeçando o documento, leva-nos a considera-lo não o mais importante, mas aquele que precisava de uma urgente resposta em vistas do contexto como se aplicava o batismo na época. Sabemos que o catolicismo batizava por aspersão, administrando seu dogma para infantes. O Protestantismo seguiu a mesma conduta. Porém, essa situação era muito embaraçosa, pois não há referências bíblicas para o ato batismal de crianças, no entanto, cumpria com determinados interesses políticos. Além disso, a forma como era conduzido o ritual abre precedentes para enormes críticas, porquanto difere em muito com o preceituado nas Escrituras. Vejamos como era o ritual católico em Portugal no século XVI de acordo com Francisco Pires de Almeida:
1) A primeira etapa ocorria do lado de fora da porta principal da igreja, onde o sacerdote perguntava aos padrinhos qual o nome a dar à criança. Depois de nomeada, dava-se então começo aos vários exorcismos. Em primeiro lugar, realizavam-se na face do bebé as três insuflações, que assumiam a forma de uma cruz, com o propósito de afastar o diabo14. Após os sopros, seguiam-se os sinais da cruz estendidos às várias partes do corpo: nos olhos para que visse Deus; nos ouvidos para o ouvir; nas narinas para que usufruísse o seu odor; no peito, ou melhor, no coração, para que nele acreditasse; e na boca para o demonstrar através das suas palavras15. Depois, o sacerdote colocava a mão direita sobre a cabeça do pequeno para destruir os laços que o prendiam a Satanás. Passava-se então à administração do sal, depois de o exorcizar16. Segundo Nicolas Lopez Martinez, as liturgias apelavam aos méritos divinos para purificar os elementos sacramentais e os afastar do domínio do demónio17. Por isso, os manuais de Braga e de Coimbra exigiam o exorcismo do sal, pedindo ao Criador que o transformasse num medicamento perfeito (perfecta medicina) para afugentar o inimigo. Daí que fosse colocado na boca do recém-nascido18. Entre as orações que se seguiam, intercaladas com mais dois sinais da cruz na testa, finalizava-se a primeira ronda dos exorcismos com abjurações para amaldiçoar o diabo. Para ultimar a primeira fase do ritual, o sacerdote orava com os padrinhos o Credo in Deum, o Pater Noster e o Ave Maria.
2) Ao deixarem o adro da igreja, dava-se lugar à fase liminar, que já ocorria dentro desta. O manual de Braga exortava a que o sacerdote abrisse com a sua saliva os sentidos, isto é, as narinas e os ouvidos do recém-nascido com duas intenções: expulsar o diabo e tornar a criança capaz de ouvir e sentir o odor de Deus19. Depois, seguido pelos padrinhos, levava a criança nos braços para junto da pia batismal, enquanto entoava a ladainha de Todos os Santos e o Kyrie eleison20. Aí, benzia e exorcizava a fonte. Ambos os manuais impunham que o sacerdote revolvesse duas vezes sob a forma de cruz a água batismal, lançando-a de seguida para fora do bacio. Aconselhavam também a que o ministro alterasse o seu tom de voz, assim como quando soprasse sobre a água em forma de cruz e lhe inserisse um círio aceso. E, por fim, recomendavam que nela derramasse o óleo do crisma e o óleo santo de per se e só depois os dois conjuntamente. Desta forma, a água batismal adquiria o poder de santificar: lavaria os vícios (pecado original) e regeneraria para se exercer o bem21. Dirigindo novamente a atenção para o bebé, o ministro retirava-lhe a roupa e passava às renunciações a Satanás e às suas obras e pompas, às quais os padrinhos respondiam Abrenuncio. Colocava, sob a forma de cruz, o óleo dos catecúmenos entre as espáduas e o peito do menino para que adquirisse vida eterna e, voltava a interrogar os padrinhos sobre os artigos da fé, questionando-os por três vezes se era intenção da criança ser batizada. Os padrinhos respondiam afirmativamente enquanto a tocavam. Deste modo, ficava pronta para ser banhada por três vezes na fonte batismal com a fórmula Ego te baptizo in nomine patris et filii et spiritus sancti22.
3) Assim que emergia da água batismal, dava-se a fase de agregação. O padre fazia-lhe na cabeça o sinal da cruz com o óleo do crisma, salientando que tinha sido regenerada pela graça do Espírito Santo. Colocava-lhe o capelo branco para que um dia fosse levada ao tribunal do Senhor e entregava-lhe a vela acesa na mão direita para que Cristo a encontrasse na sala da justiça celestial. Despedia-se dos padrinhos e advertia-os para que ensinassem a fé ao afilhado23. Dava-se assim por concluído o ritual do batismo.
Ora, com tantas inserções de elementos estranhos àquela referenciada pelos Evangelhos e Atos dos Apóstolos, não podemos menosprezar a repulsa anabatista pelo dogmatismo uma vez que estava em causa a pureza do Cristianismo. A cerimônia batismal havia sido completamente alterada e a reação anabatista ao esquisito ato batismal foi a sua rejeição e o rebatismo como negação da crendice ao ato praticado na infância. Isso significou a renúncia pelas orientações papais e clericais. Era um ultraje ao poder dominador católico, por mais que os anabatistas suíços o fizessem em termos de pacifismo, mas o que poderiam ter feito se tinham no coração a chama pela obediência? A vinculação do ato de batismo para o controle estatal gerou também discordância. Todos os batizados, de certa forma, vinculavam-se ao controle das autoridades políticas e religiosas.
Desta maneira, o anabatismo reivindicou simplesmente o cumprimento das práticas cristãs em consonância com os ensinos do Cristo e dos Apóstolos. Essa é a base da fé cristã. Quem interfere no legado apostólico, acrescentando ou retirando, demonstra ter maior autoridade do que aqueles constituídos diretamente pelo Cristo.  Um erro gravíssimo!  

Notas de Almeida

14 As três insuflações provêm do costume romano cuja prática já se incluía na liturgia hispânica. BRAGANÇA, Joaquim O. – Le symbolisme des rites baptismaux au Moyen Age: les rites d'admission au catéchuménat. Didaskalia. Lisboa. ISSN 0253-1674. 3:1 (1973), p. 44.
15Neste breue manual se [con]ten cousas muito necessarias e p[ro]ueitosas a todo sacerdote q[ue] ha de administrar e dar os sacrame[n]tosE assi som muitas missas deuotissimas e p[ro]ueitosas p[e]ra ha saude dalma e do corpo. as quaes nu[n]ca foro[m] postas em nenhu[m] missal ne[m] manual de Braga (doravante Manual de Braga). Impressus in antiquissima bracharensis civitate: [s.n.], 1517, fl. 2-2v.; Manuale secundu[m] consuetudinem alme Colymbrieñ [sic] Ecclesie (doravante Manual de Coimbra). Lixboneñ ciuitate: Nicolaum Gazini, 1518, fl. 2.
16 A colocação do sal já vinha do tempo de Santo Agostinho e foi aceite por todas as tradições das igrejas locais. Apenas divergia a oração do exorcismo. O ritual romano optava por Benedicto salis enquanto que outros rituais, como o galicano, davam preferência ao Exorcismus salis. BRAGANÇA, Joaquim O. – Le symbolisme, cit., p. 53.
17 LOPEZ MARTINEZ, Nicolas – Notas sobre la lucha contra el diablo mediante los sacramentos. in IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE TEOLOGÍA DE LA UNIVERSIDAD DE NAVARRA, Pamplona, 1983 – Sacramentalidad de la Iglesia y Sacramentos: actas. Pamplona: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, 1983, p. 807.
18Manual de Braga, fl. 2v.; Manual de Coimbra, fl. 2v.
19 O manual de Coimbra não exclui a abertura dos sentidos, apenas altera a ordem, impondo a administração da saliva após o exorcismo da fonte batismal e antes das renunciações (Cf. Manual de Coimbra, fl. 6v.); Manual de Braga, fl. 4v.
20 A ordem de invocação dos santos e arcanjos variou.
21 Manual de Braga, fl. 6-7; Manual de Coimbra, fl. 4v.-6v.
22 Apenas ficam dúvidas se Braga optou por uma imersão, uma vez que não alude à sub trina mersione. Manual de Braga, fl. 7; Manual de Coimbra, fl. 7.
23 Manual de Braga, fl. 7; Manual de Coimbra, fl. 7.

Referência
Almeida, Francisca Pires. O ritual do batismo em Portugal na Baixa Idade Média e nos inícios do século XVI. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1646-740X2014000200006#14. Acesso em 19 Out 2017.



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