O
batismo é símbolo da regeneração. É a manifestação da experiência consciente e espiritual
alcançado pela fé do confesso novo cristão. Foi na Idade Média muito
reverenciada pelos anabatistas, tanto que, em muitos casos, perderam suas vidas
pela prática bíblica do rito ordenado por Cristo. Não é sem razão que o nome
anabatista provém deste misto de obediência a Deus e perseguição, porquanto
revelou o apego genuíno à verdade bíblica, renegada pelo tenebroso catolicismo
medieval e não discernida pelo Protestantismo. Assim, o batismo tem importância
essencial para todas as discussões cuja pauta traz a Reforma Radical (nomenclatura
atribuídas aos anabatistas que pretendiam restaurar os padrões
neotestamentários, retornando às raízes do verdadeiro cristianismo).
Dentre
os líderes mais emblemáticos do movimento, encontramos Michael Sattler,ex-prior
do mosteiro beneditino de São Pedro da Floresta Negra. Ele foi possivelmente responsável
pela confissão de Schleitheim, primeiro documento dos anabatistas suíços que
reivindicava o cumprimento expresso das Escrituras. O diferencial de Sattler
foi à forma de adesão ao movimento. Apesar de não sabermos detalhes sobre sua
conversão, sabe-se que sua decisão foi muito bem pensada. Na confissão, versou
sobre a primeira ordenança de Cristo nesses termos:
O
batismo será dado a todos aqueles que aprenderam o arrependimento, a
regeneração de vida e que acreditam verdadeiramente que seus pecados foram
expiados por Cristo, e a todos quantos andarem na ressurreição de Jesus Cristo
e desejem ser sepultados com ele na sua morte, para que possam ser
ressuscitados com ele, e a todos aqueles que, com esse significado,
requeiram-no (batismo) de nós e o requeiram por si mesmos. Isto exclui
completamente o batismo infantil, a maior e principal abominação do Papa. Em
tudo isso tem-se fundamento e testemunho dos apóstolos (Mt 28; Mc 16; At 2, 8,
16 e 19). Desejamos sustentar isso humildemente, porém firmemente e com
convicção.
O
texto acima é o primeiro ponto da Confissão. Encabeçando o documento, leva-nos
a considera-lo não o mais importante, mas aquele que precisava de uma urgente
resposta em vistas do contexto como se aplicava o batismo na época. Sabemos que
o catolicismo batizava por aspersão, administrando seu dogma para infantes. O
Protestantismo seguiu a mesma conduta. Porém, essa situação era muito
embaraçosa, pois não há referências bíblicas para o ato batismal de crianças,
no entanto, cumpria com determinados interesses políticos. Além disso, a forma
como era conduzido o ritual abre precedentes para enormes críticas, porquanto
difere em muito com o preceituado nas Escrituras. Vejamos como era o ritual
católico em Portugal no século XVI de acordo com Francisco Pires de Almeida:
1)
A primeira etapa ocorria do lado de fora da porta principal da igreja, onde o
sacerdote perguntava aos padrinhos qual o nome a dar à criança. Depois de
nomeada, dava-se então começo aos vários exorcismos. Em primeiro lugar,
realizavam-se na face do bebé as três insuflações, que assumiam a forma de uma
cruz, com o propósito de afastar o diabo14. Após os sopros, seguiam-se os sinais da cruz estendidos às
várias partes do corpo: nos olhos para que visse Deus; nos ouvidos para o
ouvir; nas narinas para que usufruísse o seu odor; no peito, ou melhor, no
coração, para que nele acreditasse; e na boca para o demonstrar através das
suas palavras15. Depois, o sacerdote colocava a mão direita sobre a cabeça do
pequeno para destruir os laços que o prendiam a Satanás. Passava-se então à
administração do sal, depois de o exorcizar16. Segundo Nicolas Lopez Martinez, as liturgias apelavam aos
méritos divinos para purificar os elementos sacramentais e os afastar do
domínio do demónio17. Por isso, os manuais de Braga e de Coimbra exigiam o exorcismo
do sal, pedindo ao Criador que o transformasse num medicamento perfeito (perfecta medicina) para afugentar o
inimigo. Daí que fosse colocado na boca do recém-nascido18. Entre as orações que se seguiam, intercaladas com mais dois
sinais da cruz na testa, finalizava-se a primeira ronda dos exorcismos com
abjurações para amaldiçoar o diabo. Para ultimar a primeira fase do ritual, o
sacerdote orava com os padrinhos o Credo
in Deum, o Pater Noster e
o Ave Maria.
2)
Ao deixarem o adro da igreja, dava-se lugar à fase liminar, que já ocorria
dentro desta. O manual de Braga exortava a que o sacerdote abrisse com a sua
saliva os sentidos, isto é, as narinas e os ouvidos do recém-nascido com duas
intenções: expulsar o diabo e tornar a criança capaz de ouvir e sentir o odor
de Deus19. Depois, seguido pelos padrinhos, levava a criança nos braços
para junto da pia batismal, enquanto entoava a ladainha de Todos os Santos e
o Kyrie eleison20. Aí, benzia e exorcizava a fonte. Ambos os manuais impunham que
o sacerdote revolvesse duas vezes sob a forma de cruz a água batismal,
lançando-a de seguida para fora do bacio. Aconselhavam também a que o ministro
alterasse o seu tom de voz, assim como quando soprasse sobre a água em forma de
cruz e lhe inserisse um círio aceso. E, por fim, recomendavam que nela
derramasse o óleo do crisma e o óleo santo de per se e só depois os
dois conjuntamente. Desta forma, a água batismal adquiria o poder de
santificar: lavaria os vícios (pecado original) e regeneraria para se exercer o
bem21. Dirigindo novamente a atenção para o bebé, o ministro
retirava-lhe a roupa e passava às renunciações a Satanás e às suas obras e
pompas, às quais os padrinhos respondiam Abrenuncio. Colocava, sob a forma
de cruz, o óleo dos catecúmenos entre as espáduas e o peito do menino para que
adquirisse vida eterna e, voltava a interrogar os padrinhos sobre os artigos da
fé, questionando-os por três vezes se era intenção da criança ser batizada. Os
padrinhos respondiam afirmativamente enquanto a tocavam. Deste modo, ficava
pronta para ser banhada por três vezes na fonte batismal com a fórmula Ego te baptizo in nomine patris et filii et
spiritus sancti22.
3)
Assim que emergia da água batismal, dava-se a fase de agregação. O padre
fazia-lhe na cabeça o sinal da cruz com o óleo do crisma, salientando que tinha
sido regenerada pela graça do Espírito Santo. Colocava-lhe o capelo branco para que um
dia fosse levada ao tribunal do Senhor e entregava-lhe a vela acesa na mão
direita para que Cristo a encontrasse na sala da justiça celestial. Despedia-se
dos padrinhos e advertia-os para que ensinassem a fé ao afilhado23. Dava-se assim por concluído o ritual do batismo.
Ora,
com tantas inserções de elementos estranhos àquela referenciada pelos
Evangelhos e Atos dos Apóstolos, não podemos menosprezar a repulsa anabatista
pelo dogmatismo uma vez que estava em causa a pureza do Cristianismo. A
cerimônia batismal havia sido completamente alterada e a reação anabatista ao
esquisito ato batismal foi a sua rejeição e o rebatismo como negação da crendice ao ato praticado na infância. Isso significou a renúncia
pelas orientações papais e clericais. Era um ultraje ao poder dominador
católico, por mais que os anabatistas suíços o fizessem em termos de pacifismo, mas o que poderiam ter feito se tinham no coração a chama pela obediência? A vinculação do ato de batismo para o controle estatal gerou também
discordância. Todos os batizados, de certa forma, vinculavam-se ao controle das
autoridades políticas e religiosas.
Desta
maneira, o anabatismo reivindicou simplesmente o cumprimento das práticas
cristãs em consonância com os ensinos do Cristo e dos Apóstolos. Essa é a base
da fé cristã. Quem interfere no legado apostólico, acrescentando ou retirando,
demonstra ter maior autoridade do que aqueles constituídos diretamente pelo
Cristo. Um erro gravíssimo!
Notas
de Almeida
14 As
três insuflações provêm do costume romano cuja prática já se incluía na
liturgia hispânica. BRAGANÇA, Joaquim O. – Le symbolisme des rites baptismaux au
Moyen Age: les rites d'admission au catéchuménat. Didaskalia. Lisboa. ISSN
0253-1674. 3:1 (1973), p. 44.
15Neste
breue manual se [con]ten cousas muito necessarias e p[ro]ueitosas a todo
sacerdote q[ue] ha de administrar e dar os sacrame[n]tos
E assi som muitas
missas deuotissimas e p[ro]ueitosas p[e]ra ha saude dalma e do corpo. as quaes
nu[n]ca foro[m] postas em nenhu[m] missal ne[m] manual de Braga (doravante Manual
de Braga). Impressus in antiquissima bracharensis civitate: [s.n.], 1517, fl.
2-2v.; Manuale secundu[m] consuetudinem alme Colymbrieñ [sic] Ecclesie (doravante Manual
de Coimbra). Lixboneñ ciuitate: Nicolaum Gazini, 1518, fl. 2.
16 A
colocação do sal já vinha do tempo de Santo Agostinho e foi aceite por todas as
tradições das igrejas locais. Apenas divergia a oração do exorcismo. O ritual
romano optava por Benedicto salis enquanto que outros rituais, como o
galicano, davam preferência ao Exorcismus salis. BRAGANÇA, Joaquim O.
– Le symbolisme
,
cit., p. 53.
17 LOPEZ
MARTINEZ, Nicolas – Notas
sobre la lucha contra el diablo mediante los sacramentos. in IV SIMPÓSIO
INTERNACIONAL DE TEOLOGÍA DE LA UNIVERSIDAD DE NAVARRA, Pamplona, 1983 – Sacramentalidad
de la Iglesia y Sacramentos: actas. Pamplona: Servicio de Publicaciones de
la Universidad de Navarra, 1983, p. 807.
18Manual
de Braga, fl. 2v.; Manual de Coimbra, fl. 2v.
19 O
manual de Coimbra não exclui a abertura dos sentidos, apenas altera a ordem,
impondo a administração da saliva após o exorcismo da fonte batismal e antes
das renunciações (Cf. Manual de Coimbra, fl. 6v.); Manual de
Braga, fl. 4v.
20 A
ordem de invocação dos santos e arcanjos variou.
21 Manual
de Braga, fl. 6-7; Manual de Coimbra, fl. 4v.-6v.
22 Apenas
ficam dúvidas se Braga optou por uma imersão, uma vez que não alude à sub
trina mersione. Manual de Braga, fl. 7; Manual de Coimbra, fl.
7.
23 Manual
de Braga, fl. 7; Manual de Coimbra, fl. 7.
Referência
Almeida,
Francisca Pires. O ritual do batismo em Portugal na Baixa Idade Média e nos
inícios do século XVI. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1646-740X2014000200006#14.
Acesso em 19 Out 2017.
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