Quando
Jesus encontrou Mateus, ordenando, em seguida, que deixasse seu posto fiscal
para segui-lo; quando Pedro, João e Tiago foram chamados para deixarem de lado
a pescaria a fim de se tornarem pregadores exclusivos do Evangelho; quando
competiu a Igreja se concentrar durante dez dias em Jerusalém para orar, em
intenso clamor, pelo Espírito da promessa; quando Paulo abnegou sua posição
religiosa e cultural, tendo em vista se dedicar ao ministério vocacional de
apóstolo; todos não viveram experiências “exageradas” aos olhos convencionais e
seculares? Quando o próprio Cristo, enquanto homem, jejuou durante quarenta
dias; quando não descansava durante as noites, pretendendo dedicar-se à oração;
quando pregava duramente contra a hipocrisia farisaica, desnudando o caráter
medonho desse grupo religioso; não estava ele propondo um caminho a seguir bem
diferente do convencional e tradicional? Esse comportamento incomodou as
tendências religiosas porque se erigia contra o marasmo religioso reinante.
A internalização daqueles comportamentos prenunciou doutrinas
como a renúncia aos bens materiais (Mateus 19:16-24), sobre a renúncia à
própria vida (Mateus 16:24-26), com a máxima que dizia o modo de ser verdadeiro de um discípulo de Cristo: “Assim, pois,
qualquer de vós, que não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu
discípulo” (Lucas 9:33); também revelou as intenções divinas sobre a negação
das paixões carnais (Colossenses 3:5) e o apego àquilo que estava sendo
revelado e, ainda, por ser revelado em posteriores eventos.
Diante do exposto, percebe-se que o
Cristianismo foi fundado sobre princípios bem diferentes da vida cotidiana, sendo
privilegiados aqueles que tiveram a oportunidade de ouvir a pregação do
Evangelho direto da fonte. Esses princípios não se restringiram ao modus daquele tempo, já que se tratava
da apresentação de conceitos absolutos e imutáveis, regidos pelos atributos
invariáveis da Divindade. Apesar disso, o pensamento reinante dentre a maioria das
vertentes cristãs modernas foi de que essa visão e seu conjunto de práticas estavam
limitados ao cânon bíblico, não devendo ser aplicada sua regra no todo aos
seguidores posteriores, mas em parte, muito embora esteja claro no texto
bíblico a abrangência e a amplitude da soberana vontade sobre seus preceitos.
Deste modo, por razões alheias e diversas, preferiram deixar de lado a
possibilidade de reprodução daquelas práticas nos movimentos posteriores ao
Cristianismo Primitivo (certamente, essa mentalidade em muito contribuiu para a
corrente “cristã” de liberalismo teológico e se mostrou contraditória já que
muitos destes movimentos reivindicam ligação com o primitivismo sem guardarem
seus postulados). Afora isso, somos impelidos a acreditar que esta aceitação
restritiva rejeita também a pura pregação, o puro comportamento e as muitas
ações neotestamentária, pois, através das diversas tentativas, fazem releituras
daqueles eventos dando outras interpretações a que pretendiam os protagonistas
bíblicos e readaptam os preceitos segundo a própria conveniência. O erro de
tomar a revelação divina e sujeita-la à mentalidade humana com seus incrementos
produziu o misto entre Cristo e belial,
prática rejeitada pelo apostolado severamente, visto que essa mistura provocou
um hibridismo ocasional, diminuindo o poder de subsistência das verdades
bíblicas, incorrendo na ausência da providência divina e abrindo precedentes
para a formação de um “cristão” adaptado, modelado e sujeito às tendências
culturais, aos processos de inovação temporal e às políticas eclesiásticas
dominadoras.
Essa impressão herdada da teologia das
reinvenções (termo nosso referente à maneira de pensar a teologia com
adaptações) projetou a possibilidade e a necessidade de algo que não deveria
ser possível nem necessário: alterar sensivelmente o legado de Cristo e de seus
apóstolos. Quem olha o Cristianismo de hoje verifica um movimento profundamente
alterado, modificado e recriado, confirmando a tese de que o hidridismo
evolutivo do cristianismo produziu outro movimento, fugindo à regra primordial
de ser o que era no princípio. Essa regra de conservação, apesar de rejeitada
pela corrente híbrida, repousou serena nos grupos marginalizados que viveram
paralelamente àqueles impostores da fé cristã. Logo, quando tratamos de
movimentos como o Montanismo, devido à rejeição aos postulados apostólicos e
não somente a sua história, faz-se ouvir aquele eco ensurdecedor de que ele não
representou o puro Cristianismo. Por qual razão? Em razão de Eusébio de
Cesareia, um historiador bajulador de Constantino e adepto da teologia das
adaptações, assim ter falado? Então, é preferível acreditar em alguém que não
foi fiel ao paradigma da eclesiologia primitiva a acreditar em quem queria
viver segundo aqueles preceitos?
A rejeição aos montanistas é tão grande
que foram taxados como a heresia mais antiga que surgiu na História da Igreja.
Apesar disso, devemos fazer uma pergunta: eles foram heréticos ou reacionários?
Quais diferenças devem ser apresentadas para podermos extrair uma compreensão
mais coerente dentro da pretensão do texto? O parecer de alguns estudiosos
sobre o assunto poderá nos amparar nesse desafio.
Para John de Soyres: Nossa
conclusão é que não havia nada [no Montanismo] oposto ao credo. Anne Jensen afirmou: A erudição moderna demonstrou a ortodoxia
essencial do movimento original da Frígia. Sheila E. McGinn reforça a informação quando, referindo-se aos
oráculos, enfatizou: Estes poucos
oráculos demonstram a ortodoxia doutrinária da Nova Profecia – um ponto que
agora é uma questão de consenso entre os estudiosos montanistas. Mesmo quem
se opunha religiosamente ao movimento, mas dedicou-se a uma compreensão sensata
do movimento soube reconhecer seus valores. O estudioso jesuíta Walter J. Burghardt asseverou: Não posso encontrar evidências convincentes
de que o Montanismo primitivo fosse culpado de heresia. David
Wrigth confere mais um entendimento equilibrado: Sem demora, é óbvio que [o Paráclito do
Montanismo] não tem nada a ver com o complemento da regra de fé ou a
apresentação de novas revelações.
A evidência mais concreta
que podemos aplicar ao nosso raciocínio para validar o Montanismo como
autêntico movimento cristão, oriundo do anseio de querer ser a Igreja Primitiva
de seu tempo, é Tertuliano. Tertuliano se apresenta não apenas como teólogo que
vai confirmar as convicções montanistas, alinhando-as com as de Atos e das
Epístolas, mas como membro efetivo de uma Igreja pura. Tertuliano rejeitou a
Igreja em caminhos de desvio pelo seu envenenamento com o mundanismo da época,
desqualificando-a como uma instituição séria com veia espiritual. A
sensibilidade tertulianista foi tão profunda que conseguiu absorver a pregação
de Montano, Maximila e Priscila sem se opor, visto que era a mesma pregação de
Atos, e assim que pode rumou para a comunidade montanista sem pestanejar.
Portanto, muitos
estudiosos do assunto e não meros expectadores que se deixam alienar por
opiniões diversas têm confirmado as orientações do Montanismo, versando sobre
seu apego ao conceito primeiro da fé cristã. Essa corrente minoritária de
pensadores têm tido a sensatez para compreender um dos movimentos mais
incompreendidos da História do Cristianismo e demonstrar pela argumentação
consistente a coerência de Montano e de seu grupo.
Heládio Santos
Prof. Instituto Pietista de Cultura
Referências
Burghardt, Walter J. Primitive Montanism: Why Condemned? in
Dikran Y. Hadidian (ed.), From Faith to Faith: Essays in Honor of
Donald G. Miller on his Seventieth Birthday (Pittsburgh: The Pickwick
Press, 1979), p. 340.
Jensen, Anne. Prisca - Maximilla - Montanus: Who was the Founder of ‘Montanism’?
in Elizabeth Livingstone (ed.), Studia Patristica, vol. 26
(Leuven: Peeter's Press, 1993), p. 148.
Soyres, John De, Montanism
and the Primitive Church (Cambridge: Deighton, Bell and Co., 1878),
p. 31.
Mcginn, Sheila E. The Montanist Oracles and Prophetic Theology,
in Elizabeth A. Livingstone (ed.), Studia Patristica, vol. 31
(Leuven: Peeter’s Press, 1997), p. 132.
Wright, David F. Why were the Montanists Condemned? Themelios, 2,
21-22 (1970).
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