A fé cristã
sempre enfrentou desafios, tanto externos como internos. Um desses desafios que
se apresentou ao longo de sua história e até hoje se faz presente é o
equilíbrio entre a igreja como corpo de Cristo, habitado e vivificado pelo
Espírito Santo e a igreja enquanto instituição. Muitos são os riscos que se
apresentam a igreja quando ela se envereda no caminho de privilegiar apenas um
desses componentes de sua vida, como fica evidente ao lançarmos nosso olhar
para a história eclesiástica.
O momento mais emblemático dessa
relação tensa foi certamente o período em que a igreja geral defrontou-se com o
movimento da Nova Revelação ou Nova Profecia, como se chamavam, ou Montanismo,
nome dado por seus opositores. Entre tantos outros movimentos surgidos no
período pós-apostólico, esse se apresentou como um retorno ao cristianismo
primitivo, dirigido pelo Espírito e baseado nas Escrituras.
Originário da Frígia, na Ásia, o
movimento teve como seu líder inicial Montano, convertido do paganismo à fé
cristã e que, na metade do segundo século, começou a proclamar sua experiência
particular com o Espírito Santo, acompanhado posteriormente por duas mulheres
Priscila (Prisca) e Maximila, que
juntamente com ele afirmavam ser usados pelo Espírito no dom carismático da
profecia.
Com uma teologia que defendia a
prática da glossolalia e do profetismo, o quiliasmo ou o reino milenar em
Jerusalém, a intolerância quanto às inovações doutrinárias e a uma certa insubordinação à
hierarquia episcopal institucionalizada, o rigor ascético, a proibição do matrimônio e a
não fuga dos martírios, foram eles alvo da condenação por parte dos bispos da igreja geral.
Mas o que realmente foi esse
movimento? Fruto do milenarismo asiático
influenciado pelo Apocalipse? Uma tentativa de retorno à Igreja das origens,
sufocada pela organização sistemática?
Um movimento político religioso das igrejas rurais contra as igrejas
urbanas e seus bispos centralizadores ou uma reação do conservadorismo presente
nas regiões rurais contra a modernização, ou helenização, das igrejas urbanas
que vão abandonando a origem carismática?
Buscando uma resposta ao que foi
realmente a Nova Revelação ou Nova Profecia, Francisco Heládio Cunha dos Santos
usa primeiramente a Bíblia como base para analisar o comportamento do movimento,
bem como a sociologia e as fontes históricas disponíveis, tanto contrárias como
as favoráveis a Montano e seus seguidores.
Diante do leitor surge assim um
panorama muito mais vivo e amplo desse momento histórico da igreja cristã, com
sólida base bíblica e teórica: uma igreja que enfrenta um momento de
institucionalização e hierarquização, com a centralização do poder nas mãos dos
bispos com base na sucessão apostólica e tradição oral, vê surgir em seu seio
um movimento que busca viver o cristianismo primitivo, questionando tais
mudanças.
Entre vários méritos da presente
obra, temos o do autor ter escolhido um momento histórico da igreja, em
especial a brasileira, muito apropriado para lançar um novo olhar sobre um
dos mais incompreendidos movimentos da igreja
cristã primitiva.
Diante do quadro hoje presente
no universo evangélico brasileiro, onde vemos desde aqueles que usando como
pálida desculpa uma pseudo direção do Espírito Santo se insurgem contra
qualquer forma de liderança, como aqueles que buscam centralizar o poder e
proíbem ou demonizam as manifestações espirituais, uma das observações feitas
pelo autor é muito pertinente:
A autoridade e o carisma não
poderiam caminhar isolados um do outro. São pré-requisitos para a boa ordem da
comunidade a fim de que vivam em sintonia com os ideais doutrinários e
devocionais. Montano não pareceu um insurgente, mas mostrou-se um crente
restaurador que vivia no contexto da Igreja. Sobre ele ocorreu uma visitação
espiritual com intenções de alcançar os demais cristãos, ainda que eles fossem
nominais e sem a experiência pentecostal. Os bispos não o observaram sob este
ângulo, antes o viram pelo viés da ameaça e desestabilização do poder. Como
evidenciou-se, os bispos estavam tão afundados no racionalismo e no formalismo
que a Igreja perdeu o vigor e o brilho do Cristianismo dinâmico. (p.105)
A presente obra, rica em seu
conteúdo, revela o profundo conhecimento do autor sobre o Montanismo. Trata-se
de um trabalho objetivo, muito bem documentado e com fontes bem selecionadas;
representa uma grande contribuição tanto para compreendermos melhor a história
passada, como um alerta para avaliarmos o nosso proceder hoje como Igreja do
Senhor.
Esequias
Soares
Jundiaí, SP,
13 de outubro de 2011.
Líder
da AD em Jundiaí-SP, graduado em Letras (Hebraico) pela Universidade de São
Paulo, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie, professor de Hebraico, Grego e Apologia Cristã, bem como comentarista
de Lições Bíblicas (CPAD) e autor de
diversos livros, entre eles Visão
Panorâmica do Antigo Testamento, Heresias
e Modismos, Comentário Bíblico de
Oséias, Analisando o divórcio à luz
da Bíblia, Manual de Apologética
Cristã, Testemunhas de Jeová, e
coautor de Teologia Sistemática
Pentecostal, editados pela CPAD, também é presidente da Comissão de
Apologética Cristã da CGADB.
APRESENTAÇÃO
O presente
livro, escrito por Heládio dos Santos, tem a tarefa de procurar retratar a
história do Montanismo, movimento nascido na Frígia, Ásia Menor, por volta da segunda metade do século II, sob
um outro olhar, diferente da versão que a tradição eclesiástica deu ao movimento.
Trata-se, portanto, de um empreendimento ousado: o de enfrentar séculos de
história da Igreja para deslegitimar (ou no mínimo duvidar) (d)a visão
difamatória que recebeu o movimento cristão liderado por Montano, visão
sustentada sobretudo por Eusébio de Cesaréia, na sua clássica História
Eclesiástica, e depois repercutida e acolhida, sem muita contestação, até hoje
pela maioria da literatura cristã que trata do assunto.
É louvável,
pois, o enfrentamento do autor do livro com a tradição histórica, pela coragem
de revisitar e vasculhar obras e documentos antigos e fazê-los falar noutro
tom, num tom dissonante dos acordes hegemônicos da opinião geral. Desta forma,
através de uma análise atenta e cuidadosa deste material, o autor se permite
discordar da história oficial, apresentando um outro olhar que a história, por
razões várias (e às vezes espúrias, permitam-me o trocadilho), nos negou.
Heládio dos Santos, com argumentos convincentes e abalizados em autores
consagrados e em textos bíblicos, mostra-nos assim que o Montanismo pode ser
não somente considerado um movimento genuinamente cristão, como pode ser visto
como um grupo que se mostrou como uma continuação do modelo neotestamentário de
Igreja para o cristianismo do seu tempo.
Na verdade,
o livro procura responder a perguntas do tipo: a quem interessa detratar o
movimento e atacá-lo como seita? Na boca de quem ou em que contexto
histórico-eclesiástico o Montanismo ficou conhecido sob a pecha de herético?
Por que não nos darmos o direito de examinarmos mais cuidadosamente o chamado -
depreciativamente pelos seus adversários - Montanismo e lançarmos um olhar sob
outro viés, sob outras lentes, dando-lhe um certo crédito pela coerência de
vida e de doutrina que os mentores e adeptos do Montanismo mostraram ter com o
Evangelho? As razões pelas quais o Montanismo foi atacado e vilipendiado
realmente se constituem, todas elas, em denúncias dignas de crédito e capazes
de desabilitar sua doutrina ou mesmo servem para desconfigurar o movimento como
não-cristão?
Para
responder estas questões, o livro se organiza da seguinte maneira: as
considerações iniciais, nas quais introdutoriamente o autor situa o leitor
historicamente no movimento, apresentando-lhe os objetivos e as motivações
gerais de iniciativa de escrever a obra. No capítulo 1, o autor preocupa-se em
mostrar a base bíblica em que se apoiou o movimento fundado por Montano.
Não foi aleatório, portanto, a escolha
da pintura da capa do livro, em que, pregando no Areópago ateniense, aparece o
apóstolo Paulo, de cujo ensinamento, deixado nas cartas neotestamentárias,
serviu como uma das principais referências doutrinárias de Montano. O capítulo
2 aborda o nascimento do Montanismo e as
motivações que o levaram a se insurgir contra a cristandade da época. No
capítulo 3, Heládio dos Santos debruça seu olhar criterioso para investigar
historicamente a figura de Tertuliano, considerado um dos pais da Igreja, que seguiu de perto as ideias montanistas.
Aqui cabe ressaltar que Tertuliano, ao longo de suas obras apologéticas,
doutrinárias e, sobretudo, polêmicas, não fez menção ao montanismo como
movimento herético, mesmo tendo oportunidade, como grande defensor que era da
doutrina cristã lembremo-nos inclusive de que é sua a conhecida obra
Prescrições contra os Hereges. Com
formação em Ciências Sociais, no capítulo 4, não poderia o autor de se eximir
de algumas incursões no terreno da sociologia da religião, fazendo uma análise
da ação social de linha weberiana, ainda que breve, do Montanismo, para
ressaltar como se constituía o ethos e a práxis dos cristãos montanistas. Este
capítulo prepara-nos para o seguinte, o capítulo 5. Neste, é dedicado à análise
e à avaliação, com bases bíblicas e históricas, dos principais pontos
característicos da ética e da doutrina montanistas. No capítulo 6, destaca o
autor como os preceitos montanistas podem ainda servir/sobreviver para a nossa geração. Frente a isso, cabem as
perguntas: quais as ressonâncias deste movimento na atualidade? Estamos
contextualmente vivendo no mesmo tempo de frieza e indiferença a um cristianismo
autêntico da época de Montano/Priscila/Maximila e, por isso mesmo, desejosos de
ouvir os ecos das ideias e dos ideais defendidos com tanto coragem pelos
montanistas? Nas considerações finais, traz o livro breves e gerais comentários
sobre o já tratado durante toda a obra, mas pontuando o valor dos ensinamentos
bíblicos deixados pelos montanistas. Fechando o livro, há uma bibliografia
relevante e um conjunto de sites que serviram de fontes legítimas para a
produção da obra.
O livro, ao
final, parece ter cumprido a sua tarefa: fazer um balanço honesto do movimento
montanista, através de uma releitura descomprometida das imposições
interpretativas da história oficial.
Para
encerrar esta apresentação, é preciso dizer que o livro traz uma contribuição
significativa para a literatura cristã,
tanto pelo ineditismo de uma obra em português que versa, toda ela, sobre um
dos movimentos mais importantes da Igreja, bem como pelo tipo inusitado de
abordagem dado ao Montanismo.
João Batista Costa Gonçalves
(Doutor em
Línguística, Professor Adjunto do Curso de Letras
e do
Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade
Estadual do
Ceará (Uece) e Professor de Hermenêutica
Teológica do
Curso de Pós-Graduação em Teologia Histórica e Dogmática)
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