“Honrado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula; porém, aos que se dão à prostituição, e aos adúlteros, Deus os julgará.” (Hebreus 13: 4)
No texto citado acima, o escritor da carta aos hebreus faz uma nítida separação entre o matrimônio e o leito sem mácula, sendo o primeiro uma condição necessária para o segundo. O matrimônio é um pacto reconhecido publicamente diante dos homens e de Deus, pelo qual um homem e uma mulher resolvem compartilhar as suas vidas até a morte, criando os filhos, gerados desse enlace, para Deus. A união física que se segue está em relação dialética com o matrimônio, ou seja, o matrimônio é pressuposto de sua pureza enquanto ela é o selo que efetiva o matrimônio.
“Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à SUA mulher, e serão ambos UMA CARNE”(Gênesis 2: 24).
Em verdade, o casamento não é um simples contrato sujeito a distrato ou mera associação superficial, como na nossa sociedade secularizada se pretende apresentá-lo, mas antes, é uma fusão transcendental, uma instituição divina. Visto o casamento como mero contrato, os cônjuges estariam livres para estabelecer os seus termos (condições) e fins (objetivos), que não satisfeitos dariam ensejo ao distrato (divórcio). No entanto, quando se concebe o casamento como uma instituição, vê-se que ele existia abstratamente como um modelo (arquétipo), antes mesmo do enlace efetivo entre as duas pessoas que o concretizam, como uma verdadeira ordenação divina com estrutura e fins definidos por Deus.
Quando os cônjuges entendem o casamento como uma mera reciprocidade de expectativas condicionada, o simples egoísmo de um deles pode ensejar prejuízos enormes, mas, quando se enxerga pelo modo bíblico que o bom relacionamento entre os casais é na verdade apenas uma condição para a realização do fim primordial do casamento, o qual está ligado aos filhos ou à família como ente institucional, então o egoísmo tem que ser sepultado. Assim, como há um sentimento patriótico que une uma nação apesar das divergências, é preciso existir um sentimento familiar que revele a importância do lar e a irracionalidade de sua divisão (Mateus 12 : 25).
O fim principal do casamento é a procriação e educação dos filhos para Deus, os outros são fins secundários (mútuo auxílio, regulação dos impulsos sexuais, etc). Os fins secundários, entretanto, nunca podem ir de encontro ao fim principal. A unidade institucional do casamento se estabelece pela submissão dos filhos aos pais, pela submissão da esposa ao esposo e pela submissão do esposo aos fins do casamento definidos por Deus através da Escritura.
No princípio, Deus estabeleceu o sexo para a procriação da espécie (Gênesis 1: 27 e 28). O sexo faz parte da dimensão animal do ser humano, tanto que não subsistirá na eternidade (Marcos 12 : 25), e nós sabemos que entre os animais sexo é apenas para a procriação da espécie. Entretanto, a queda gerou no homem a sensualidade (Gênesis 3: 7), razão porque após a queda, o sexo no casamento, passou a ser também um moderador dos impulsos sexuais, além de meio de procriação (I Cor. 7 : 2, 9).
João Calvino, o teólogo da Reforma Protestante, assim se expressou:
“Mas alguém dirá: ‘A cura da incontinência é a única razão para se contrair o matrimônio?’. Minha resposta é que isto não é o que Paulo pretende dizer. Pois aos que têm o dom de ser capazes de suprimir o matrimônio, ele dá a liberdade de se casarem ou não. Mas ele ordena aos demais a que ponham bastante atenção em suas fraquezas, ao se casarem. O que importa é o seguinte: o que está em jogo aqui não são as razões pelas quais o matrimônio foi instituído, e, sim, as pessoas para quem ele é indispensável. Porque, se atentarmos para o primeiro matrimônio, perceberemos que ele não podia ser um antídoto contra uma doença, a qual ainda não existia, senão que foi instituído para a procriação de filhos. É verdade que, depois da Queda, este outro propósito foi acrescido.”
(Comentários a I Cor. 7).
“....Este é o modo como Agostinho trata do assunto, e por sinal muito bem, em seu livro ‘Das Vantagens do Matrimônio’, e às vezes em outras partes. Pode-se sumariá-lo como segue: o ato sexual entre esposo e esposa é algo puro, é legítimo e santo: porque é uma instituição divina. A paixão incontrolável com que os homens são inflamados é um vício oriundo da corrupção da natureza humana; mas, para os crentes, o matrimônio é um véu que cobre essas falhas, de modo que Deus não mais as vê.” (Comentários a I Cor. 7)
Martinho Lutero também afirmou:
“...É importante obedecer à ordem e ao mandamento de Deus por amor da propagação da raça. E mesmo que isto não fosse um motivo para o casamento, deveríamos lembrar que ele é um remédio contra o pecado e uma defesa contra a devassidão” (Comentários sobre o salmo 127)
Diante do exposto, talvez alguém me replique: o sexo também não é uma manifestação de amor?. A resposta seria sim e não. O sexo não foi criado como uma expressão exclusiva ou insubstituível de amor, mas foi criado para procriação e, posteriormente, passou a servir, no casamento, também para regular os impulsos sexuais. Todavia, devemos lembrar que o homem é também espírito e, ao contrário dos animais, tem o poder de espiritualizar tudo o que faz. Assim, o homem deve espiritualizar o sexo, fazendo dele uma manifestação de amor, humanizando-o, colocando-o a dimensões mais elevadas. Um olhar, um beijo, um abraço e infinitos outros gestos e ações podem ser as mais altas expressões de amor. É exatamente por isso que ninguém pode deixar o seu cônjuge, alegando que com ele não se satisfaz plenamente do ponto de vista sexual; nem dizer que, em razão da existência de uma enfermidade do cônjuge que impossibilite a vida sexual, o relacionamento conjugal estará prejudicado para sempre. Sobre isso, pronuncia-se João Calvino:
“...Depois disso, é o Senhor mesmo quem deve refrear e restringir-nos por meio de seu Espírito, mesmo se as coisas não vão tão bem quanto gostaríamos. Pois se uma esposa cai por um longo tempo em infindável enfermidade, nem por isso o esposo é justificado em buscar outra esposa. Semelhantemente, se após o casamento o esposo começa a sofrer de alguma enfermidade, a esposa não pode, sobre esta base, fazer repentina transição para outro estado....Tendo entrado na vida conjugal, tenhamos esperanças de que ela nos será de grande valia, se, ao contrário de nossas expectativas, as coisas se desandarem” ( Comentários a I Cor. 7).
Do que foi falado até aqui, vê-se que é um pecado contra o casamento o uso de anticoncepcionais artificiais. Os métodos naturais (tabela, etc) não são pecaminosos, pois consistem no controle da natalidade pela abstinência. No caso, as relações sexuais no casamento seriam naturais e, por serem no período de provável infertilidade, visariam apenas a moderação do impulso sexual, ou então, se apresentariam como uma manifestação de afeto. Lembramos, entretanto, que a supressão total de filhos de modo voluntário é pecaminosa por ir de encontro ao fim primordial do casamento. No caso, do uso dos anticoncepcionais artificiais, a pessoa não controla a intensidade das relações íntimas, mas procura impedir delas o resultado natural, a procriação, ou seja, as relações sexuais são utilizadas unicamente para a moderação do apetite sexual, como se esse fosse o objetivo principal do casamento, em ofensa direta à fertilidade natural e aos fins primordiais do casamento: a procriação da espécie e o estabelecimento da família.
A ligadura de trompas então, é uma afronta direta ao Todo-poderoso, principalmente levando-se em conta que a fertilidade é considerada na Bíblia como uma bênção de Deus (Êxodo 23 : 25, 26; Salmo 127 : 3; Salmo 128 : 3, 4).
Resta ainda uma questão : Se o fim primordial do casamento é a perpetuação da espécie e a constituição da família, sendo a moderação dos impulsos físicos pelo sexo uma mera concessão que passou a existir depois da queda, seria permitido, então, àquele casal que já gerou filhos abster-se definitivamente do sexo?
A pergunta acima estabelecida é de salutar importância por duas razões. Em primeiro lugar, porque assim como um solteiro pode sublimar os impulsos sexuais, um casal também o pode. Em segundo lugar, porque a prática mencionada na questão era muito comum na Igreja Antiga, sendo validada inclusive pelos pais da Igreja e regulamentada pelos cânones antigos.
Os antigos cânones da Igreja proibiam ao esposo negar-se a sua esposa contra sua vontade sob o pretexto de castidade, semelhantemente à esposa a negar seu corpo ao esposo. Mas permitia que vivessem juntos, após procriação, em perene celibato, desde que houvesse concordância. Essa posição é perfeitamente bíblica.
Alguns poderão contestar a posição acertada da Igreja antiga, citando o que se contém em I Cor. 7:5 que diz : “Não vos priveis um ao outro, senão por consentimento mútuo, por algum tempo, para vos aplicardes ao jejum e à oração; e depois ajuntai-vos outra vez, para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência”. Esta passagem, entretanto, precisa ser visto no seu contexto, senão vejamos:
(1) Paulo está escrevendo uma carta a uma igreja específica, considerando suas fraquezas próprias, por isso, ele abre muitas concessões aos seus conselhos, considerando a imoralidade reinante ( I Cor. 7 : 1, 2; 7 : 8, 9);
(2) Em I Cor. 7: 5, Paulo não está condenando a perene abstinência, mas recomendando que os casais cristãos de Corinto, em face da imoralidade reinante, só se abstivessem (de comum acordo entre marido e mulher) se fosse com o compromisso de se dedicarem a oração e ao jejum, voltando a ajuntar-se outra vez, não porque fosse pecado a abstinência, mas para que Satanás não os tentasse. No versículo seguinte (v. 6), Paulo mostra estar dando apenas um conselho : “Digo, porém, isto como que por permissão e não por mandamento”;
(3) Nós sabemos que, por causa de uma enfermidade, a abstinência pode se tornar necessária e, depois de uma certa idade, temos a falta de abstinência como um descontrole pecaminoso;
(4) Paulo diz que a prestação sexual do homem é um direito exigível da mulher e a prestação sexual da mulher um direito exigível do homem (I Cor. 7: 3 e 4). Ora, ninguém pode renunciar a sua obrigação, mas cada um pode renunciar ao seu direito;
(5) Colocamos, por fim, a título de observação, que a pessoa repudiada por cometimento de adultério, no caso de não haver possibilidade de restauração do matrimônio, não pode contrair novas núpcias, devendo ficar abstinente para sempre (Mateus 19:9). Do mesmo modo, aquele que deixou seu cônjuge por algum outro motivo que não a infidelidade dele, não poderá contrair novo casamento, mas deve voltar a ele ou permanecer só e abstinente (I Cor. 7: 10 e 11).
Na primeira carta aos coríntios, Paulo recomenda o celibato, dizendo: “E bem quisera eu que estivésseis sem cuidado. O solteiro cuida das coisas do Senhor, em como há de agradar ao Senhor; mas o que é casado cuida das coisas do mundo, em como há de agradar à mulher” (I Cor. 7:32, 33). Vide os versículos 34 e 35.
A primeira vista, o estado matrimonial seria necessariamente inferior ao do celibato, mas convém aqui algumas observações. Paulo está fazendo um juízo de fato e não de valor. Paulo não está dizendo que, pelo casamento, os homens deveriam se distrair do cuidado das coisas do Senhor, mas dizendo que, em decorrência da natureza pecaminosa, normalmente acontece e pode ser observado: os cônjuges, seduzidos pelo egoísmo, querendo cada um absorver a atenção do outro, gerando as “tribulações na carne” mencionadas em I Cor. 7 : 28. Por outro lado, Paulo assinala que há exceções quando fala de mulheres santificando os maridos para Deus e maridos santificando suas esposas ( I Cor. 7 : 14).
Quando o apóstolo fala que os casados cuidam das coisas do mundo, ele está querendo observar que eles mais facilmente são cativados para a vida social intensa, com toda a sua futilidade. João Calvino entende do seguinte modo: “...se relacionam com circunstâncias prazenteiras, tais como as frivolidades de uma recepção de núpcias, os momentos de diversões, e outras coisas que a vida conjugal tem de atender”. Entretanto, além do crente evitar programações inúteis, ele pode aproveitar certas oportunidades para evangelizar, e ainda tornar o lazer da família maximamente marcado pela presença da Palavra de Deus. O remédio geral, entretanto, dado por Paulo é o que segue: “Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; o que resta é que também os que têm mulheres sejam como se não as tivessem; e os que choram, como se não chorassem; e os que folgam, como se não folgassem; e os que compram, como se não possuíssem; e os que usam deste mundo, como se dele não abusassem, porque a aparência deste mundo passa.” (I Cor. 7: 29 – 31).
A história nos fala de casamentos que glorificaram a Deus, como o de Lutero e o de Jonathan Edwards.
Lutero casou-se com a ex-freira, Catarina von Bora. Durante as refeições, a sua casa ficava cheia de estudantes que vinham participar do alimento e aprender teologia à mesa. Lutero, em seu lar, ensinava o catecismo não apenas para os seus filhos, mas para muitas crianças da Igreja. Catarina apoiou Lutero em todas as suas atividades como reformador, pastor, teólogo, escritor, professor, músico e compositor. Era estimada por todos. Administrava sabiamente o lar, enquanto Lutero exercia suas atividades. Orlando Boyer escreveu sobre Lutero e sua esposa:
“Havia entre Lutero e sua esposa profundo amor de um para com o outro. São de Lutero estas palavras: ‘sou rico, Deus me deu a minha freira e três filhos, não me importo das dívidas: Catarina paga tudo’....nas suas meditações sobre as Escrituras, muitas vezes se esquecia das refeições. Ao escrever o comentário sobre o salmo 23, passou três dias no quarto comendo somente pão e sal. Quando a esposa chamou um serralheiro e quebraram a fechadura, acharam-no escrevendo, mergulhado em pensamentos e esquecido de tudo em redor”.
Jonathan Edwards foi pastor e avivalista, teólogo e filósofo, escritor e professor, além de presidente de uma Universidade. A sua esposa, como ele, era dotada de um intelecto privilegiado e disciplinada na leitura. Jonathan Edwards conservou até o fim da vida, o hábito que adquiriu quando criança: o de isolar-se para “buscar contemplação divina e oração”. Foi numa dessa ocasiões, em 1737, que ele teve uma das mais surpreendentes de suas experiências espirituais, na qual lhe veio uma profunda revelação de Cristo como Mediador e do Espírito Santo como Santificador. A sua esposa também ficou conhecida por ter tido experiências semelhantes. Orlando Boyer afirma o seguinte:
“Aos vinte e quatro anos casou-se com Sara Pierrepont, filha de um pastor, e desse enlace nasceram, como na família do pai de Edwards, onze filhos.
Ao lado de Jônatas Edwards, no Grande Despertamento, estava o nome de Sara Edwards, sua fiel esposa e ajudadora em tudo. Como seu marido, ela nos serviu de exemplo de rara intelectualidade. Profundamente estudiosa, inteiramente entregue ao serviço a Deus, ela era conhecida por sua santa dedicação ao lar, pelo modo de criar seus filhos e pela economia que praticava, movida pelas palavras de Cristo: ‘para que nada se perca’. Mas, antes de tudo, tanto ela como seu marido eram conhecidos por suas experiências em oração. Faz-se menção destacada especialmente de um período de três anos, durante o qual, apesar de gozar de perfeita saúde, ficava repetidas vezes sem forças, por causa das revelações do céu. A sua vida inteira foi de intenso gozo no Senhor.
Jônatas Edwards costumava passar treze horas, todos os dias, estudanto e orando. Sua esposa, também, diariamente o acompanhava na oração. Depois da última refeição, ele deixava toda a lida, a fim de passar uma hora com a família”
Sobre os relatos do avivalista acerca da esposa, comenta Lloyd-Jones:
“...Ele nos faz um extenso relato de uma das admiráveis experiências que sobrevieram a sua esposa. A esposa de Jonathan Edwards foi uma pessoa santa como o próprio Edwards, e ela tem algumas experiências quase incríveis. Ele nos dá um relato delas e as examina”.
Rev. Glauco Barreira Magalhães Filho
(membro do Presbitério Anabatista da Igreja em Fortaleza)