Dedico este artigo aos irmãos Carlos Pereira, Jean Carlos e Pitágoras, cuja amizade sincera tem me animado a continuar.
Durante o período da Reforma do século XVI os protestantes, e principalmente os católicos, faziam todo o possível para difamar o povo anabatista, a fim de que não fossem ouvidos. A hierarquia católica sabia muito bem que a Igreja Romana não se ajustava nem estruturalmente nem doutrinariamente aos ensinos apostólicos que regiam a igreja primitiva. Os protestantes, apesar de terem redescoberto a soteriologia (doutrina da salvação) bíblica, não foram ousados de modo a tirar das premissas bíblicas as suas últimas conseqüências, principalmente no que se referia à estrutura da Igreja. Assim, defendia-se a salvação pela fé, mas administrava-se o batismo em crianças que não podiam crer em razão da pouca idade. Afirmava-se o sacerdócio de todos os crentes, mas não se faziam reuniões participativas (I Cor. 14:26), nem todos os crentes partiam o pão (Atos 2:42). No meio de tudo isso, a fé anabatista revelava-se não apenas bíblica, mas também coerente, dando oportunidade a que os seus defensores fossem chamados de radicais.
Para que se criassem preconceitos e barreiras mentais que impedissem as pessoas de ouvir os anabatistas, começaram a levantar calúnias contra eles. Assim como os primitivos cristãos foram acusados de incesto, antropofagia e ateísmo, os anabatistas do século XVI foram associados inadequadamente à grupos espiritualistas ligados a toda sorte de profetismo. Deste modo, muitos diziam que os anabatistas praticavam a poligamia, promoviam revoltas e desordens, sendo incapazes de diálogo e comparados a cães raivosos.
Procuraremos aqui, de modo breve, mostrar a posição anabatista com respeito à política e, logo, à ordem, assim como em relação à cristandade e, consequentemente, ao ecumenismo.
O Anabatismo e a Ordem Política
“Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus” (Romanos 13:1)
“Respondeu Jesus: o meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (João 18:36).
Os versículos citados acima parecem contradizer-se, mas eles apenas representam o paradoxo da posição anabatista. Kierkegaard afirmava que a fé cristã é verdadeira e paradoxal. Cremos que as estruturas políticas que ainda existem no mundo não estão diretamente sob o comando de Deus, porquanto o Diabo, de certo modo, detém os reinos da terra, que lhe foram entregues quando Adão pecou (Lucas 4:6). No entanto, subsiste uma relativa ordem pela providência divina, a fim de que o mundo não entre em um completo caos. Sob este aspecto providencial, podemos dizer que as ordenações foram constituídas por Deus e, assim, nos submeteremos a elas, a não ser naqueles casos em que importa antes obedecer a Deus que aos homens (Atos 4:18 e 19; Atos 5:28 e 29).
Paralelamente ao que foi dito acima, afirmamos que, pelo fato de a política deste mundo estar sob a influência de Satanás, o príncipe deste mundo (João 14:30) e deus deste século (II Cor. 4:4), não devem os cristãos se envolver com ela, quer sendo cabo eleitoral, candidato ou eleitor. Devemos ir às urnas em obediência às autoridades, mas não devemos dar o nosso voto a nenhum dos candidatos, pois o reino de Deus não é deste mundo.
Como Jesus pagaremos tributo, mas não vamos aceitar sermos agora feitos reis pelos homens (João 6:15). A igreja falsa é aquela que se prostitui com os reis da terra (Apoc. 17:1 e 2). Uma igreja que se envolve com política “crucifica” Jesus e solta Barrabás.
Não adianta aqui citar os reis de Israel ou passagens do Antigo Testamento, pois os israelitas, como tais, eram o povo terreno de Deus. A terra prometida aos hebreus era Canaã e a luta deles foi contra carne e sangue. A igreja é o povo celeste de Deus que peregrina na terra (Efésios 1:3 e 2:6), cuja luta não é contra carne e sangue (Efésios 6:12). Seguimos o princípio estabelecido por Tertuliano, mestre da Igreja Antiga, que nasceu apenas cinqüenta anos após a morte do apóstolo João, na sua Apologia: “nada mais estranho ao cristão do que a política”.
“Porque muitos há, dos quais muitas vezes vos disse, e agora também digo, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo. Cujo fim é a perdição; cujo deus é o ventre, e cuja glória é para confusão deles, que só pensam nas coisas terrenas. Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos o salvador, o Senhor Jesus Cristo”(Filipenses 3:18-20).
Isabel Belo de Azevedo, ao discorrer sobre a segunda confissão de fé dos batistas gerais ingleses, no seu livro A celebração do indivíduo, disse:
“A Segunda confissão, também arminiana, foi redigida pelo grupo de Smith (...) A predestinação é negada e ressaltada a justificação pela fé, em termos bem próximos de Lutero. Estabelece-se que a igreja deve exercer a disciplina para com os pecadores, afastando-os, mas não se emprega a palavra ‘excomunhão’(...) ao mesmo tempo que recomenda que se ore pelas autoridades, fixa-se que nada têm a ver com a igreja. Segundo a tradição do anabatismo pacifista, os juramentos são vedados”.
Como o poder secular expressa-se por um governante, um parlamento e os magistrados, somos conduzidos à conclusão de que um cristão também não pode ser um magistrado. É de lembrar que o magistrado, como aplicador da lei, está vinculado ao Direito Positivo, o qual, muitas vezes, fere a lei de Deus. Assim, um juiz poderá ter que decretar a pena de morte, autorizar um aborto, realizar um divórcio ou até mesmo celebrar aliança entre homossexuais.
Jesus recusou a ocupação de magistrado constituído pelos homens, muito embora seja juiz constituído pelo Pai: “Mas ele lhe disse: Homem quem me constituiu juiz ou repartidor entre vós?”(Lucas 12 : 14). Para Paulo, os juízes terrenos eram necessariamente incrédulos (I Cor. 6:6). Em uma confissão de fé redigida pelos batistas gerais ingleses entre 1612 e 1614, mostrou-se de um modo não legalista, porém irônico, a impossibilidade de um crente ser magistrado, nos seguintes termos:
“Se o magistrado seguir a Cristo(...) deve amar seus inimigos e não matá-los; orar por eles e não puni-los; alimentar-lhes e dar-lhes água e não aprisioná-los, bani-los, desmembrá-los e tomar seus bens”
A . B. Muirhead, em seu livro Cristianismo através dos séculos, publicado no Brasil pela Casa Publicadora Batista em 1951, nas pp. 239-241, trata dos pontos doutrinários distintivos dos anabatistas do século XVI, entre os quais inclui:
“8. Em conseqüência da sua idéia em relação à completa separação entre a igreja e o Estado, negavam ao crente o direito de exercer a magistratura, julgando que isto violava o ensino e a prática de Cristo. Assim como Cristo se negou a julgar o caso dos dois irmãos (Lucas 12), os cristãos também devem deixar de julgar os outros.
9. Julgavam ...a guerra, mesmo em defesa da pátria, completamente contrária ao espírito do evangelho.
10. Opunham-se à pena de morte, mostrando que o homem não tem direito, sob qualquer circunstância, de matar o próximo.
11. Eram intransigentes e coerentes na insistência da supremacia das Escrituras Sagradas como regra de fé e prática...”
Tertuliano, em seu Tratado de Idolatria, caps. XVII e XXI, condenou o exercício da magistratura pelo cristão, afirmando que ela poderia levá-lo a determinar muita coisa contrária à vontade de Deus, inclusive a pena de morte.
Encerro esta parte citando alguns trechos da Carta a Diogneto, documento cristão do século III:
“Habitam suas pátrias, mas como estrangeiros. Participam de tudo como cidadãos, mas suportam tudo como estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha...Vivendo na carne, não vivem segundo a carne. Na terra vivem, participando da cidadania do céu (...) Para resumir numa palavra, o que é a alma no corpo, são os cristãos no mundo: como por todos os membros do corpo está difundida a alma, assim os cristãos por todas as cidades do universo. Habita a alma no corpo, mas não procede do corpo; assim os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo...”
O Anabatismo e a Cristandade : o problema do ecumenismo
“Porque nada podemos contra a verdade, senão pela verdade”(II Cor. 13:8)
Nos nossos dias, muito se tem falado acerca de diálogo ecumênico. A idéia seria a de os cristãos de diferentes segmentos juntarem-se para encontrar o consenso através do diálogo. Os ecumênicos, católicos ou protestantes, dizem que não se deve conversar sobre as diferenças doutrinárias, pois “causam divisões”, mas somente sobre os pontos em comum, os quais aumentam o afeto e promovem a proximidade. Do outro lado, alguns fundamentalistas desaprovam todo tipo de diálogo com grupos opostos, apregoando um inteiro separatismo.
Os anabatistas do século XVI, não obstante a enraizada convicção que possuíam, mostravam-se sempre dispostos ao diálogo, participando de diversos debates. Aqueles homens não se fechavam em um dogmatismo despropositado, ao mesmo tempo que não viam o diálogo como uma conversa improdutiva, objetivando o consenso pelo consenso. Eles acreditavam que o diálogo era um caminho para a pesquisa e descoberta da verdade, daí porque tinham reuniões participativas e a interpretação comunitária das Sagradas Escrituras.
Os católicos, e às vezes os protestantes, foram marcados pelo espírito partidário intolerante. Toda essa conversa, portanto, de diálogo ecumênico para alcançar o consenso, e não a verdade, proposta por estes grupos, revela o espírito intolerante neles presente, ou seja, estes religiosos são incapazes de conversar sobre suas divergências em paz, como eles próprios admitem. Aliás, isso se revela pelo ódio e intolerância que revelam para com aqueles que não são ecumênicos. A Bíblia, porém, diz que “o amor...se regozija com a verdade” (I Cor. 13:4 e 6).
Os anabatistas não estão dispostos a transigir com a verdade, mas não são intolerantes. Defendem a Sã Doutrina, mas não odeiam os que discordam, por isso estão prontos para o diálogo edificante, cujo alvo é a descoberta da vontade absoluta de Deus.
O menonita John Driver, em seu livro sobre o anabatismo intitulado Contra a Corrente, disse:
“Essa obrigação de conversar fraternalmente com outros cristãos deve ser retomada constantemente. Rejeita-se a idéia de que a apostasia, ou a heresia, são permanentes ou tampouco se herda automaticamente a heresia. Assim, permanece a obrigação de voltar a conversar com esses cristãos que têm outra maneira de pensar, embora seus antepassados tenham perseguido nossos antepassados”.
“Diálogo” (diá= através; logos= palavra) todavia, para os gregos, era um confronto de raciocínios com a pretensão de atingir o conhecimento verdadeiro. A maiêutica ou método socrático consistia em uma série de perguntas irônicas de refutação, objetivando levar o indagado a descobrir o conceito correto das coisas. Os anabatistas querem um diálogo, aquele que descortina a verdade.
Os ecumênicos costumam dizer que todos estão certos, estando tudo a depender do ângulo com que se consideram as coisas, ou ainda, que todos têm ensinos certos e errados. O apóstolo Paulo, porém, diz: “antes, como Deus é fiel, a nossa palavra para convosco não foi sim e não”(II Cor. 1: 18).
O que temos dito até aqui vale primordialmente para as nossas relações com os protestantes e grupos evangélicos, pois as propostas ecumênicas do catolicismo, acima de tudo, têm objetivos políticos e partidários, valendo-se a “igreja” de Roma de táticas as mais traiçoeiras possíveis. Isso, entretanto, não quer dizer que não teremos diálogo com quer que queira dialogar conosco.
A “igreja” romana não propõe um diálogo a fim de que se revele a verdade, mas unicamente para convencer os cristãos a aceitarem o papa como cabeça da Igreja e fator de unidade do cristianismo. Por esta razão, um verdadeiro anabatista ou um batista oriundo do movimento puritano jamais admitirá qualquer aliança com Roma. No cap. 10 da confissão de fé Batista de 1683 se estabelecia que “o papa de Roma não pode, em qualquer sentido, ser o cabeça da Igreja; ele é o anticristo, o homem da iniquidade e filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra Cristo e contra tudo que se chama Deus, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, como se fosse o próprio Deus. O Senhor Jesus o matará com o sopro de sua boca. (II Tess. 2: 2-9)”.
John Bunyan advertiu para sempre os verdadeiros cristãos em seu livro O peregrino:
“Enquanto eu cogitava qual seria a razão disso, divisei pouco adiante de mim uma caverna, onde dois gigantes, PAPA e pagão, habitaram outrora. Fora pelo poder e pela tirania deles que esses homens, cujos ossos, sangue, cinzas, etc. jaziam ali, acabaram cruelmente mortos”.
Rev. Glauco Barreira Magalhães Filho
Membro do Presbitério Anabatista da Igreja em Fortaleza
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