A
religião passa por um processo distinto atualmente. Muitas das antigas crenças
estão sendo esquecidas ou consideradas ultrapassadas, dando lugar a uma
perspectiva mais humanizada do que propriamente divinizada. Pelo lado do
Cristianismo, o homem cristão não quer ser só um despenseiro de Deus (em alguns
casos), mas também aquele que está começando a interferir nos estatutos sagrados
considerados invioláveis e imutáveis. As mudanças nos fundamentos e na
identidade cristã já desde muito tempo vem sendo observadas, mas agora está
atingindo um patamar de maior amplitude, em vistas do cumprimento das predições
proféticas explicitadas nas Escrituras.
Em
um mundo que caminha para uniformizar o pensamento em diversos segmentos, o
ecumenismo ganha força. Talvez pelo fato de os indivíduos não estarem mais
intencionados em defender a verdade absoluta, antes, preferirem proclamar um
ideal de respeito e de conciliações mesmo que seja com o irreconciliável. Com um
discurso de maturidade entre os diferentes decorrente das danosas experiências
do passado, com a premissa de não criticar as convicções dos outros e com
anseios mais místicos do que espirituais, o ecumenismo arrola todas as
vertentes que caminham com uma identidade híbrida. A identidade híbrida
constitui-se de um perfil no qual há uma mistura entre aquilo que se crê e
aquilo que aparentemente não se crê, mas que em nome de um pacto para uma
pacificação religiosa muitos paradigmas tradicionais que outrora se opunham,
agora, se adequam a uma realidade cujo teor tenta harmonizá-los. Essa tendência
não acabará com a religião alheia, mas colocá-la-á sob tutela de quem exercerá
um poder universal no futuro e que reivindicará a substituição do culto a Deus
para o culto a sua pessoa dado o sucesso que alcançará. Um só agente acima de
tudo e de todos recebendo a veneração de todos os grupos religiosos é o ápice
da cultura ecumênica. Logo, evidencia-se a crise da particularidade religiosa.
Anibal Pereira dos Reis (p.18) registrou o ideal ecumênico primeiro encabeçado
pelo catolicismo romano e, principalmente, pelo papa, ao afirmar:
O
ecumenismo tem como tarefa mobilizar todos os expedientes em vista desse
objetivo unionista.
O
cardeal Ernesto Ruffini, na assembleia de 18 de novembro de 1963 do Concílio
Vaticano II, assim definiu – e muito bem – o ecumenismo: ‘um apostolado
especial para a obtenção da unidade sob a autoridade do papa’.
O
primordial intento do ecumenismo é levar as áreas católicas distantes da
comunhão romana a se renderem ao olimpo do Vaticano, o papa, o centrum unitatis (o centro da unidade).
A
particularidade religiosa qualifica as diversas convicções quanto ao sagrado,
necessitando ser o que sempre foi para deixar sua marca enquanto movimento
independente. Sob um olhar sociológico, a particularidade e as diferenças entre
as diversas religiões tornam esses objetos de estudo ainda mais atraentes,
visto poder manifestar vieses instigantes e intrigantes aos quais um bom
pesquisador se debruçará para explicitar suas peculiaridades, ou seja, há um
campo fértil e profícuo para análises, muito mais promissor do que a da harmonização
dos diversos credos a partir de pontos convergentes. A individualidade
religiosa possibilita também um debate acerca da verdade. Obviamente, a
ponderação não poderá passar por outro referencial se não o da Bíblia Sagrada,
já que ela traz o autêntico alinhamento com Deus e sua vontade (sei da crítica
que muitos fazem a este quesito, acreditando existirem outros instrumentos que
revelam a Divindade. Entretanto, como o ponto central das Escrituras é o
Cristo, o Messias e o Mediador, não sobrou absolutamente nada para outros cujos
manuais e credos divergem da mensagem cristã reivindicarem qualquer porção de
revelação divina). Por assim dizer, o rompimento com a sua particularidade está
associado a secularização. Peter Berger (p.139) nos dá uma luz para compreender
esse fenômeno:
A
secularização acarretou um amplo colapso da plausibilidade das definições
religiosas tradicionais da realidade. Essa manifestação da secularização a
nível de consciência [...] tem o seu correlato a nível sócioestrutural (como
‘secularização’ objetiva). Subjetivamente, o homem comum não costuma ser muito
seguro acerca de assuntos religiosos. Objetivamente, ele é assediado por uma
vasta gama de tentativas de definição da realidade, religiosas ou não, que
competem por obter sua adesão ou, pelo menos, sua atenção, embora nenhuma delas
possa obriga-lo a tanto. Em outras palavras, o fenômeno do pluralismo é um
correlato sócioestrutural de secularização da consciência.
O
próprio indivíduo não mais aceita ou aprova a estrutura tradicional de sua
religião, não julgando razoável guardar o dogmatismo de sempre em meio a tantas
inovações e modificações na perspectiva de vida do mundo. Essa mentalidade
deixa de ser mais individualizada para ganhar um ar mais plural, ou seja,
buscando novas alternativas e diversificando para atender um público maior.
Vê-se, assim, a perda da plausibilidade na religião. Essa plausibilidade
interfere sensivelmente naquelas religiões pseudocristãs, muito embora se
julguem cristãs, não guardaram a sã doutrina para serem nominadas como seguidoras
fiéis do Mestre Jesus.
Entretanto,
não pretendemos aqui alçar uma bandeira de batalha contra todas as demais
religiões. Jamais! O Anabatismo desde sua formação e origem cultivou um ideal
de respeito às outras vertentes religiosas, muito embora tivesse sido
perseguido tanto por católicos quanto por protestantes no século XVI, nunca
abraçando o diálogo ecumênico. Entendia que existia uma verdade posta para além
do olhar das autoridades religiosas na qual o homem deverá prestar submissão a
Deus e não a homens ou a dogmas religiosos. Era necessário conhecer a verdade e
através dela proclamar a única e sólida maneira de se alcançar o favor divino:
a fé em Cristo. Essa mentalidade era tão presente na comunidade anabatista do
Medievo que Arnold Snyder (P.20-21) demonstra um pouco de suas convicções ao
falar que a vida contemplativa dos anabatistas não se limitava ao conhecimento
teórico, mas também vivenciavam na prática o ensino:
A
ênfase anabatista em uma igreja de crentes teve como consequência que todos os
membros da igreja deveriam ser biblicamente treinados. Embora a maioria dos
anabatistas não pudesse ler ou escrever, eles ainda sabiam de memória extensas
porções das Escrituras, organizadas por temas. Vez após vez, os Anabatistas na
prisão surpreenderam seus captores recitando de memória os fundamentos bíblicos
de suas crenças, por capítulo e versículo. Esperava-se que os membros
assumissem sua fé e fossem capazes de explicá-lo e defendê-lo biblicamente. As
crônicas mostram uma quantidade notável de conhecimento bíblico por parte de
homens e mulheres comuns que abraçaram o anabatismo.
Thomas Munzter |
O
conhecimento das Escrituras com paixão devotada a paz e a comunhão levou estes
servos de Deus a entenderem as situações dos demais. Com uma vida singela,
fundamentada nos primeiros passos da Igreja Primitiva, preocupavam-se com a
forma como a Palavra de Deus era anunciada em sua época, pois não correspondia
à prática ensinada pelas recomendações apostólicas, antes curvavam-se ao
ufanismo imperante. A compreensão anabatista sobre a necessidade de um diálogo
respeitoso, mas não desprezando as identidades religiosas, deu-se através de
situações muito complicadas, talvez para demonstrar o poder de resiliência do
anabatismo.
Enquanto, por exemplo, Martino Lutero debatia com Ulrich Zwinglio sobre
a ceia e nunca chegavam a um consenso devido à ardência dos seus espíritos
voltados para uma interpretação deles próprios; enquanto Lutero trocava farpas
e insultos com Thomaz Munzter acerca de quem melhor representava o Evangelho,
porque para Lutero, Munzter era considerado um instrumento de satanás na mesma
medida que Munzter dizia que Lutero era a virgem pura da prostituta babilônica,
Conrad Grebel advém com o mesmo espírito cristão apostólico tratando com muito
respeito Thomaz Munzter, reformador revolucionário do século XVI, dando um
exemplo primorosa na condução do esclarecimento bíblico. Em sua carta Munzter,
verificamos esses ideais nas entrelinhas:
Martinho Lutero |
Amado
irmão Tomás: por amor a Deus, não se surpreenda se nos dirigirmos a vocês sem
título e orarmos por vocês como irmãos para continuar a nos corresponder, e que
sem nos propormos ou nos conhecermos, começamos o diálogo. O filho de Deus,
Jesus Cristo, que se apresenta como o único mestre e o único chefe de todos
aqueles que devem ser salvos e que nos ordena sermos irmãos por uma palavra
comum para todos os irmãos e crentes induziu-nos e obrigou-nos a estabelecer
amizade e fraternidade [com você] e expor os pontos que se seguem. Nós também
fomos movidos pelo fato de você ter escrito dois panfletos sobre a fé espúria.
Portanto, interprete bem, através de Cristo nosso Salvador. Se Deus quiser,
será útil e benéfico para nós. (Yoder: 133)
Conrad Grebel |
Percebe-se
em Grebel um apreço não pela interpretação particularizada, mas por aquela que
vem de uma inspiração a partir das Escrituras, ou seja, a busca pela verdade no
texto sagrado. Para Conrad Grebel a verdade está acima do debate religioso de
modo que a cegueira do dogmatismo deveria ser superada pela pacificação e
quietude de espírito para se chegar à conclusão coerente da Verdade. Este modo
de exame das Escrituras permitiria não só a revelação da vontade divina, mas
também a superação da celeuma religiosa e a consciência de que religiões erram
ao não adotarem exclusivamente o cânon bíblico.
Berger,
Peter L. O dossel sagrado: elementos para
uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
Reis,
Anibal Pereira dos. O Ecumenismo e os
Batistas. Editora Caminho de Damasco: São Paulo, 1971.
Yoder, John
H. Textos Escogidos de la Reforma Radical.
Biblioteca Menno, 2016.
Snyder,
C. Arnold. De Semilla Anabautista.
Pandora Press: Ontario, Canadá, 1999.
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