Martírio de Anneken de Vlaster |
A arte tem um poder
grandioso para fornecer inúmeras informações, principalmente aquelas que
retratam momentos emblemáticos da trajetória histórica de algum movimento ou de
alguma pessoa. Iniciado no século XVI, o Renascimento, por exemplo, resgata a
cultura clássica greco-romana demonstrando uma significativa mudança do
comportamento Medieval no ingresso do Moderno. Podemos dizer que a arte renascentista
passa a ter um olhar crítico, racional e retratador, gravando nas telas ações carregadas
de símbolos.
A obra de Jan Luyken
retratando a morte de Anneken de Vlaster tem muito a nos dizer quando fazemos
uma leitura da gravura. Podemos encontrar certas mensagens não ditas, mas
expressas, capazes de identificar o movimento anabatista e o valor a ele
atribuído que o consolidou como Reforma Radical, proposta em meio a Reforma
Protestante e a contrarreforma. Na expressão artística de Luyken, uma mulher frágil
diante do espantoso fogo é o que marca nossa primeira visão, porém há outras às
margens desta constatação. A gravura retrata o suplício de Anneken que vivia na
Holanda e foi severamente torturada em 27 de outubro de 1571, sendo martirizada
em praça pública na cidade de Dam, no dia 10 do mês seguinte.
O ápice da gravura é a ilustração
da fúria tirânica desenhada contra um movimento pacífico e representado pela
frágil e destemida mulher (uma caracterização muito favorável ao Anabatismo por
sinal). O fogo representa o elemento constrangedor e avassalador cuja
finalidade era mover o condenado de sua posição original para se sujeitar ao dogmatismo
dos seus algozes. É a chamada retratação religiosa. Retratar-se significava para
o indivíduo repudiar as convicções anabatistas e reverenciar a inquisição e
seus instrumentos de tortura, assumindo a convicção dos seus acusadores, muito
embora a pena imposta não fosse perdoada. Para isso, os inquisidores queriam
ver o medo estampado nos rostos sofridos, por isso trabalhavam para produzir e
desenvolver tão depreciativo sentimento através do flagelo com o fim de
exterminar qualquer convicção avessa ao dogma cristalizada, muito embora o
movimento anabatista objetivasse resgatar os pilares primitivos encontrados na
Igreja de Atos. O clima tenebroso de obscurantismo, também, incutido pela
igreja católica ajudava no aprisionamento das mentes e de sua alienação de tal
modo que qualquer digressão à submissão católica era tida como agressão aos
institutos invioláveis do clero. Assim, incitavam o medo e o terror para banir
os indesejados.
Apesar de Anneken ter
sido condenada a morrer enlaçada e humilhada numa escada, não cedeu àquele
quadro devastador de falta de esperança, mas transmitiu em seu semblante algo
bastante diferente. Na sua visão, o fogo não “derreteu” seu coração nem pareceu
abrasar seu corpo. A chama da fogueira, por mais quente que estivesse, não foi
capaz de exterminar com sua firme fé. Ao olharmos para sua face, vemos um olhar
piedoso, mirando para o alto e inspirando um suspiro em nós de que havia uma
enorme certeza em seus olhos. A escada passa a ser o elo de transposição entre
a terra e o céu: a elevação simbólica alinhada com a firme convicção por ela
defendida. Aquela representação denota que nada nesta vida seria capaz de
minorar sua confiança de vida eterna. Muito embora deixasse para trás entes e
amigos, apropriou-se desde o início de seu sofrimento da certeza em Cristo na
qual indica o caminho certo para o céu. Sua serenidade exalta a simplicidade e
convicções anabatistas. Deste modo, ao renunciar as propostas de seus
inquisidores, reafirmou publicamente suas convicções, ou seja, na iminência do
martírio, ela ousou guardar tudo quanto havia aprendido, além de não delatar
nenhum dos irmãos de sua Igreja.
Quantas lições mais poderemos
extrair dos ícones anabatistas ilustrados nas gravuras de Jan Luyken quando
olharmos para ela e refletirmos sobre tudo posto na imagem? Muitas! Vale
salientar que este exercício não beira a idolatria, antes é uma forma de
leitura através de obras artísticas, assim concebida desde sua criação para
essa finalidade, pelas quais verificamos a exaltação da espiritualidade cristã
e anabatista.
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