As fontes
de águas são verdadeiros referenciais de pureza. Em seu nascedouro, jorram sem
acréscimos de impurezas, tornando aconselhável o beber e o saciar a sede
despreocupadamente. Uma obra tão singela, mas tão robusta pelos seus efeitos,
foi feita com o toque do Criador: “Fez sair fontes das rochas, e fez correr as
águas como rios” (Salmos 78:16). O ribeiro formado conduz o frescor e a pureza
das primeiras águas, caso não sofra qualquer interferência ao longo de sua
jornada. Mas, quando as águas da fonte começam a sofrer acréscimos de resíduos
da flora e da fauna sem vida, com possibilidades de outros resíduos da ação
humana também se juntarem à corrente, o nível de pureza reduz sensivelmente
devido à poluição, desencorajando qualquer um de
fazer uso da água conspurcada.
Quando
nos referimos aos princípios bíblicos, devemos ter em mente algo desta
natureza. Examinarmos os postulados neotestamentários como sendo as águas da
fonte permite-nos conhecer diretamente o ensino, inquieta-nos a refletir sobre
a conduta a ser pratica após o exame e torna-nos, ou não, autênticos seguidores
de Cristo. Concluímos sob essa perspectiva porque vemos a clareza das verdades
contidas no texto sagrado, entendendo que o livre acesso ao texto deverá também
nos conduzir pela interpretação coerente do Espírito que ilumina o coração
piedoso para sair das sombras e das dúvidas. A busca pelo conhecimento cristão de
forma individual foi ensinada por Cristo, mas também foi censurada quando não se fazia
uso desta significante oportunidade: “Porventura não errais vós em razão de
saberdes as Escrituras nem o poder de Deus?” (Marcos 12:24). Cristo também
ensinou a dependência do Espírito para que a interpretação precisa fosse observada:
“Mas, quando vier aquele, o Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a
verdade...” (João 16:13). A relevante crítica sobre a referida maneira de
interpretação (individual) gerou uma celeuma teológica na qual se enfatizou a
possibilidade de uma diversidade de interpretações. Certamente, existe a
possibilidade em razão da má propensão de alguns homens, mas
também uma garantia divina que se estes homens forem sujeitos à graça e à
inspiração do Espírito a história terá o fim em conformidade com os anseios divinos
de unidade e de mesma mentalidade. Afinal, está escrito: “E todos os que criam
estavam juntos, e tinham tudo em comum” (Atos 2:44), “E perseveravam na
doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações” (Atos
2:42), e “Procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”
(Efésios 4:3).
Ao
longo da História do Cristianismo, muitos movimentos chamaram para si o ilustre
título de únicos e verdadeiros intérpretes das Escrituras, proclamando a
necessidade de seus seguidores observarem estritamente suas conclusões sobre os
ensinos cristãos. Foi assim com o catolicismo romano que hoje defende a ideia de que
qualquer interpretação fora do que as encíclicas papais determinam torna o
suposto intérprete um herege. Aliás, é fazendo menção aos escritos patrísticos
de Cipriano, no século III, de onde vem a máxima: extra Ecclesiam nulla salus (fora da igreja não há salvação), que o
clero católico reclama o direito de ser sua instituição aquela formada por
Cristo em Atos dos Apóstolos. Porém, o grande responsável pela sua criação foi
o Imperador Constantino, sob a égide de que Cristo lhe tinha dado a vitória
sobre seus inimigos através de um sinal nos céus de uma cruz. O percurso
histórico católico revela a forma como foi se consolidando enquanto religião
oficial do Estado romano para em seguida seguir os ideais expansionistas, todos
orientados pela mentalidade imperial de César. Sua formação agregou às suas
convicções religiosas: crendices populares, rituais de outras religiões, superstições,
perseguições, obscurantismo, sangue derramado (homicídios inquisitoriais), acréscimos
doutrinários e mentalidade circunstancial e sintonizadas com ideais políticos.
Não é à toa que essa mistura de confusão classificou o catolicismo de a Grande
Babilônia, como fora revelada em Apocalipse. Fica então evidente que o rio de
onde o catolicismo partiu já estava contaminado, comprometendo todo o restante
de seu percurso. Desta forma, não adianta qualquer outra ação, tipo ecumenismo,
para remediar sua situação diante de Deus. Na verdade, o catolicismo já está
julgado e condenado, pois o livro da revelação já indica sua situação no
porvir.
Em
meio a esse rio de barbáries religiosas foi que no fim da Idade Média surgiu a
Reforma Protestante. Porém, surgiu com aspirações contaminadas pelo fermento
farisaico do romanismo, tentando reformar o que não poderia ser reformado. As
estruturas religiosas estavam comprometidas e a quem dos valores bíblicos,
necessitando serem “destruídas” e não reformadas. Ulrich Zwinglio, Martinho
Lutero e João Calvino exerceram um grande papel ao retiraram de Roma a
autonomia e a centralização do Cristianismo, mas pecaram ao conservarem
conceitos católicos, esquecendo-se dos princípios bíblicos. Quando recorreram a
esses, embaraçaram-se criando uma nova perspectiva religiosas associada a
dilemas do seu tempo, apesar de terem guardado o fundamental acerca da fé. Questões
relacionadas ao batismo, a ceia do Senhor e a sistemas políticos tornaram a
teologia protestante num misto entre ideais espirituais, sociais e políticos. A
equiparação entre temas antagônicos (Reino de Deus e reino deste mundo), imposições
circunscricionais na qual havia coação de civis a uma confissão protestante e a
observância de uma herança parcial do dogmatismo papal privou as pessoas de
exercerem plena autonomia e plena liberdade social, política e religiosa, apesar
de essas ações terem sido bem cristalizadas no catolicismo medieval que deveria
servir de referencial para a não prática dos resquícios observados pelos
reformadores. De certa forma, essa “imitação” protestante de alguns elementos
católicos tornou-se objeto de possibilidades para adesão ecumênica, de
reivindicações sociais e políticas atualmente. Mais uma vez, um rio que se
deixou contaminar por ideais distintos dos ideais de sua origem.
Caminhando
contra a corrente, sem focar diretrizes religiosas ou políticas, segmentos de grande
autoridade e força como mencionados, os anabatistas suíços distinguiram-se em
razão de seu lema: “restauração do Cristianismo”. Eles não pretenderam criar
mais um ramo da árvore religiosa cristã, preferiram caminhar paralelamente aos
dogmas e teologias surgidas, seguindo fielmente os postulados bíblicos. Para
demonstrar com maestria a conduta deste povo fiel, John Drive (p. 45-46) nos
traz informações preciosas para refletirmos:
O
movimento anabatista do século XVI herdou muito da tradição monástica
espiritual da Idade Média, especialmente o seu entendimento e as suas práticas
que nitidamente separaram a Igreja e o mundo. Mas os anabatistas rejeitaram a
duradoura tradição litúrgico-sacramental assim como as traduções hierárquicas
da igreja e do monastério. Ao invés disso, eles promoveram um estudo intenso da
Bíblia em estruturas mais familiares, nas quais os seus encontros eram
realizados nas suas casas e os seus relacionamentos eram como de família. Eles
viam a si mesmos como irmãos e irmãs. Aqui, eles desenvolveram um senso forte
de um chamado universal à missão e ao discipulado cristão, junto com a visão de
livre arbítrio que isso implicava.
A
visão anabatista foi modelada a partir da sua experiência de uma nova leitura
das Escrituras no contexto das suas comunidades de fé. Ao invés de enfatizar a
tão contemplada vida de meditação e oração, comum entre as ordens católicas, ou
enfatizar a doutrina certa, como protestantes convencionais têm a tendência de
fazer, os anabatistas perguntaram, “Como podemos ser obedientes ao evangelho de
Jesus Cristo?”
Apesar
do fato de que o monasticismo medieval e o anabatismo tinham muito em comum, os
seus entendimentos diferentes a respeito da comunidade cristã, ou da igreja,
resultaram em espiritualidades diferentes. Ao invés de um misticismo abstrato
de outro mundo, os anabatistas enfatizaram a prática da obediência, do amor
ativo, e da integração da fé e das obras. O seu foco não estava tanto na
cultivação de uma vida espiritual em comum através da contemplação, quanto na
prática de uma vida de oração, paz, integridade e humildade no contexto de
relacionamentos sociais radicalmente coletiva. Era uma busca por conhecer e
louvar a Deus centrada em Cristo. Além disso, a espiritualidade dos anabatistas
era um presente da graça concedida pelo Espírito, não o resultado de esforços
humanos.
Apesar
de o movimento anabatista do século XVI ter sido claramente diverso, poucos
grupos expressaram interesse na contemplação ou na introspecção solitária, ou
em práticas ascéticas como essas. O que interessava a eles era a perspectiva de
“andar em uma vida nova”. Graças à regeneração experimentada através da
maravilhosa graça de Deus que se expressou através da integração da fé e as
obras, do individual e da comunidade, e do serviço e do testemunho.
Em
outra parte do livro Drive (p.48) expressa:
Ao
insistir no papel poderoso do Espírito na interpretação bíblica, essas pessoas
simples, não estudadas, estavam, pelo menos em parte, protestando contra o
monopólio de uma religião estabelecida e as suas restrições sobre as
interpretações das Escrituras à hierarquia da Igreja e o seu clero. Na tradição
católica, a autoridade do clero se concentrava nos sacramentos. No clero do
protestantismo a autoridade residia no poder do seu conhecimento acadêmico.
Depoimentos
de anabatistas de todas as regiões onde o movimento teve início, em contraste,
concordaram de forma unânime que era impossível entender as Escrituras por
completo sem o batismo do Espírito.
A grande
diferença entre a água da fonte e as águas do rio formado é a interferência.
Quanto mais estivermos próximos da água da fonte maior será a clareza e a pureza
que constataremos. Entretanto, quanto maior for a distância da fonte, maior
também será a possibilidade de elementos estranhos comprometerem a integridade do rio, transformando-o num depósito de tantas mazelas que suas águas
turvadas e sujas revelarão suas impurezas. Por isso, bebamos sempre das águas
da fonte!
Referência
Drive,
John. Life Together in the Spirit. Institute
for the Study of Global Anabaptism: 2018
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