O Jornal Tocha da Verdade é uma publicação independente que tem como objetivo resgatar os princípios cristãos em toda sua plenitude. Com artigos escritos por pastores, professores de algumas áreas do saber e por estudiosos da teologia buscamos despertar a comunidade cristã-evangélica para a pureza das Escrituras. Incentivamos a prática e a ética cristã em vistas do aperfeiçoamento da Igreja de Cristo como noiva imaculada. Prezamos pela simplicidade do Evangelho e pelo não conformismo com a mundanização e a secularização do Cristianismo pós-moderno em fase de decadência espiritual.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Águas da fonte


As fontes de águas são verdadeiros referenciais de pureza. Em seu nascedouro, jorram sem acréscimos de impurezas, tornando aconselhável o beber e o saciar a sede despreocupadamente. Uma obra tão singela, mas tão robusta pelos seus efeitos, foi feita com o toque do Criador: “Fez sair fontes das rochas, e fez correr as águas como rios” (Salmos 78:16). O ribeiro formado conduz o frescor e a pureza das primeiras águas, caso não sofra qualquer interferência ao longo de sua jornada. Mas, quando as águas da fonte começam a sofrer acréscimos de resíduos da flora e da fauna sem vida, com possibilidades de outros resíduos da ação humana também se juntarem à corrente, o nível de pureza reduz sensivelmente devido à poluição, desencorajando qualquer um de fazer uso da água conspurcada.
Quando nos referimos aos princípios bíblicos, devemos ter em mente algo desta natureza. Examinarmos os postulados neotestamentários como sendo as águas da fonte permite-nos conhecer diretamente o ensino, inquieta-nos a refletir sobre a conduta a ser pratica após o exame e torna-nos, ou não, autênticos seguidores de Cristo. Concluímos sob essa perspectiva porque vemos a clareza das verdades contidas no texto sagrado, entendendo que o livre acesso ao texto deverá também nos conduzir pela interpretação coerente do Espírito que ilumina o coração piedoso para sair das sombras e das dúvidas. A busca pelo conhecimento cristão de forma individual foi ensinada por Cristo, mas também foi censurada quando não se fazia uso desta significante oportunidade: “Porventura não errais vós em razão de saberdes as Escrituras nem o poder de Deus?” (Marcos 12:24). Cristo também ensinou a dependência do Espírito para que a interpretação precisa fosse observada: “Mas, quando vier aquele, o Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade...” (João 16:13). A relevante crítica sobre a referida maneira de interpretação (individual) gerou uma celeuma teológica na qual se enfatizou a possibilidade de uma diversidade de interpretações. Certamente, existe a possibilidade em razão da má propensão de alguns homens, mas também uma garantia divina que se estes homens forem sujeitos à graça e à inspiração do Espírito a história terá o fim em conformidade com os anseios divinos de unidade e de mesma mentalidade. Afinal, está escrito: “E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum” (Atos 2:44), “E perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações” (Atos 2:42), e “Procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Efésios 4:3).


Ao longo da História do Cristianismo, muitos movimentos chamaram para si o ilustre título de únicos e verdadeiros intérpretes das Escrituras, proclamando a necessidade de seus seguidores observarem estritamente suas conclusões sobre os ensinos cristãos. Foi assim com o catolicismo romano que hoje defende a ideia de que qualquer interpretação fora do que as encíclicas papais determinam torna o suposto intérprete um herege. Aliás, é fazendo menção aos escritos patrísticos de Cipriano, no século III, de onde vem a máxima: extra Ecclesiam nulla salus (fora da igreja não há salvação), que o clero católico reclama o direito de ser sua instituição aquela formada por Cristo em Atos dos Apóstolos. Porém, o grande responsável pela sua criação foi o Imperador Constantino, sob a égide de que Cristo lhe tinha dado a vitória sobre seus inimigos através de um sinal nos céus de uma cruz. O percurso histórico católico revela a forma como foi se consolidando enquanto religião oficial do Estado romano para em seguida seguir os ideais expansionistas, todos orientados pela mentalidade imperial de César. Sua formação agregou às suas convicções religiosas: crendices populares, rituais de outras religiões, superstições, perseguições, obscurantismo, sangue derramado (homicídios inquisitoriais), acréscimos doutrinários e mentalidade circunstancial e sintonizadas com ideais políticos. Não é à toa que essa mistura de confusão classificou o catolicismo de a Grande Babilônia, como fora revelada em Apocalipse. Fica então evidente que o rio de onde o catolicismo partiu já estava contaminado, comprometendo todo o restante de seu percurso. Desta forma, não adianta qualquer outra ação, tipo ecumenismo, para remediar sua situação diante de Deus. Na verdade, o catolicismo já está julgado e condenado, pois o livro da revelação já indica sua situação no porvir.


Em meio a esse rio de barbáries religiosas foi que no fim da Idade Média surgiu a Reforma Protestante. Porém, surgiu com aspirações contaminadas pelo fermento farisaico do romanismo, tentando reformar o que não poderia ser reformado. As estruturas religiosas estavam comprometidas e a quem dos valores bíblicos, necessitando serem “destruídas” e não reformadas. Ulrich Zwinglio, Martinho Lutero e João Calvino exerceram um grande papel ao retiraram de Roma a autonomia e a centralização do Cristianismo, mas pecaram ao conservarem conceitos católicos, esquecendo-se dos princípios bíblicos. Quando recorreram a esses, embaraçaram-se criando uma nova perspectiva religiosas associada a dilemas do seu tempo, apesar de terem guardado o fundamental acerca da fé. Questões relacionadas ao batismo, a ceia do Senhor e a sistemas políticos tornaram a teologia protestante num misto entre ideais espirituais, sociais e políticos. A equiparação entre temas antagônicos (Reino de Deus e reino deste mundo), imposições circunscricionais na qual havia coação de civis a uma confissão protestante e a observância de uma herança parcial do dogmatismo papal privou as pessoas de exercerem plena autonomia e plena liberdade social, política e religiosa, apesar de essas ações terem sido bem cristalizadas no catolicismo medieval que deveria servir de referencial para a não prática dos resquícios observados pelos reformadores. De certa forma, essa “imitação” protestante de alguns elementos católicos tornou-se objeto de possibilidades para adesão ecumênica, de reivindicações sociais e políticas atualmente. Mais uma vez, um rio que se deixou contaminar por ideais distintos dos ideais de sua origem.
Caminhando contra a corrente, sem focar diretrizes religiosas ou políticas, segmentos de grande autoridade e força como mencionados, os anabatistas suíços distinguiram-se em razão de seu lema: “restauração do Cristianismo”. Eles não pretenderam criar mais um ramo da árvore religiosa cristã, preferiram caminhar paralelamente aos dogmas e teologias surgidas, seguindo fielmente os postulados bíblicos. Para demonstrar com maestria a conduta deste povo fiel, John Drive (p. 45-46) nos traz informações preciosas para refletirmos:
O movimento anabatista do século XVI herdou muito da tradição monástica espiritual da Idade Média, especialmente o seu entendimento e as suas práticas que nitidamente separaram a Igreja e o mundo. Mas os anabatistas rejeitaram a duradoura tradição litúrgico-sacramental assim como as traduções hierárquicas da igreja e do monastério. Ao invés disso, eles promoveram um estudo intenso da Bíblia em estruturas mais familiares, nas quais os seus encontros eram realizados nas suas casas e os seus relacionamentos eram como de família. Eles viam a si mesmos como irmãos e irmãs. Aqui, eles desenvolveram um senso forte de um chamado universal à missão e ao discipulado cristão, junto com a visão de livre arbítrio que isso implicava.
A visão anabatista foi modelada a partir da sua experiência de uma nova leitura das Escrituras no contexto das suas comunidades de fé. Ao invés de enfatizar a tão contemplada vida de meditação e oração, comum entre as ordens católicas, ou enfatizar a doutrina certa, como protestantes convencionais têm a tendência de fazer, os anabatistas perguntaram, “Como podemos ser obedientes ao evangelho de Jesus Cristo?”
Apesar do fato de que o monasticismo medieval e o anabatismo tinham muito em comum, os seus entendimentos diferentes a respeito da comunidade cristã, ou da igreja, resultaram em espiritualidades diferentes. Ao invés de um misticismo abstrato de outro mundo, os anabatistas enfatizaram a prática da obediência, do amor ativo, e da integração da fé e das obras. O seu foco não estava tanto na cultivação de uma vida espiritual em comum através da contemplação, quanto na prática de uma vida de oração, paz, integridade e humildade no contexto de relacionamentos sociais radicalmente coletiva. Era uma busca por conhecer e louvar a Deus centrada em Cristo. Além disso, a espiritualidade dos anabatistas era um presente da graça concedida pelo Espírito, não o resultado de esforços humanos.
Apesar de o movimento anabatista do século XVI ter sido claramente diverso, poucos grupos expressaram interesse na contemplação ou na introspecção solitária, ou em práticas ascéticas como essas. O que interessava a eles era a perspectiva de “andar em uma vida nova”. Graças à regeneração experimentada através da maravilhosa graça de Deus que se expressou através da integração da fé e as obras, do individual e da comunidade, e do serviço e do testemunho.
Em outra parte do livro Drive (p.48) expressa:
Ao insistir no papel poderoso do Espírito na interpretação bíblica, essas pessoas simples, não estudadas, estavam, pelo menos em parte, protestando contra o monopólio de uma religião estabelecida e as suas restrições sobre as interpretações das Escrituras à hierarquia da Igreja e o seu clero. Na tradição católica, a autoridade do clero se concentrava nos sacramentos. No clero do protestantismo a autoridade residia no poder do seu conhecimento acadêmico.
Depoimentos de anabatistas de todas as regiões onde o movimento teve início, em contraste, concordaram de forma unânime que era impossível entender as Escrituras por completo sem o batismo do Espírito.

      A grande diferença entre a água da fonte e as águas do rio formado é a interferência. Quanto mais estivermos próximos da água da fonte maior será a clareza e a pureza que constataremos. Entretanto, quanto maior for a distância da fonte, maior também será a possibilidade de elementos estranhos comprometerem a integridade do rio, transformando-o num depósito de tantas mazelas que suas águas turvadas e sujas revelarão suas impurezas. Por isso, bebamos sempre das águas da fonte!

Referência
Drive, John. Life Together in the Spirit. Institute for the Study of Global Anabaptism: 2018

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